Para vencer o terror na Europa, o melhor é reduzir o público em que as organizações terroristas recrutam seus adeptos
Escrevo enquanto ainda não se sabe o que está por trás do atentado
contra Charlie-Hebdo. Seus autores estão mortos e, por ora, se
desconhece se agiram sozinhos ou a mando. Mas, independentemente da
resposta a esse enigma, devemos comparar dois modos opostos de entender -
e tratar - conflitos como este, que opõem uma pequena, mas ativa,
franja islâmica a governos e sociedades ocidentais.
Temos duas possibilidades. Pode ter sido a ação de dois ou três perdidos
na vida, ou um ato comandado por uma organização criminosa, como a
al-Qaeda. A interpretação dominante determinará que política adotar.
Estou convicto de que os Estados Unidos, e talvez parte dos aparelhos de
segurança europeus, torcem pela segunda hipótese. O governo de
Washington se treinou para lidar com inimigos tangíveis, que enfrenta
pela força armada. Já os europeus, e sobretudo os franceses, estão mais
formados para lidar com conflitos sociais. Exploremos as duas opções.
Há um desconforto de parte da população islâmica com os Estados europeus
em que vive. Dado o volume de imigrantes muçulmanos na Europa, o Velho
Continente é mais afetado por esse problema do que os Estados Unidos.
Mas os europeus se envolvem menos em aventuras militares. E mais que
tudo, sua postura é menos belicosa. No fim das contas, os europeus
torturam menos e se relacionam melhor com as populações locais.
Os Estados Unidos adotam, faz tempo, a política do "search and destroy",
buscar e destruir, perante os grandes problemas. Isto se entendia,
quando seu rival era a União Soviética. Mas, desde 1989, sumiu esse
grande inimigo. Passaram a ter inimigos sem rosto. Khomeini ou Saddam
Hussein podem ter despertado ódio, mas eram fracos demais para
substituir Stalin ou Brejnev. Duraram pouco. Houve uma sequência de
ensaios e erros sobre quem seria o novo grande inimigo. Acabaram sendo
dois. O primeiro são as drogas, o segundo o terror.
No caso das drogas, sabemos do desastre que foi a política dos Estados
Unidos. Em vez de enfrentarem em seu chão o problema cultural que está
em serem o país que mais consome drogas no mundo, decidiram guerrear os
produtores. Curiosamente para o país líder do capitalismo, não quiseram
enfrentar a droga do lado do consumo, no âmbito do mercado. O resultado
foi óbvio: enquanto você tiver mercado para um produto, não adianta
destruir a mercadoria, porque surgirá outro produtor.
A derrota dos Estados Unidos nessa primeira guerra pós-comunista ficou
clara nos últimos anos. A derrota se deu, em verdade, na América do Sul.
Fernando Henrique Cardoso é atualmente uma das referências mundiais a
pedir a descriminalização de algumas drogas. O Uruguai liberou seu uso -
um ato de Mujica, hoje o presidente mais admirado do mundo. Já houve um
acordo implícito de que nenhum país permitiria drogas em seu
território. Acabou esse acordo. Pode demorar até que se construa uma
forma mais humana de lidar com as drogas, implicando a descriminalização
das mais leves, um encaminhamento para os dramas sociais sob as quais
vive a população pobre das áreas produtoras e o enfrentamento da falta
de sentido na vida que leva multidões dos países ricos a só encontrar
paz consumindo drogas. Mas a guerra está perdida.
Já a guerra ao terror completou 13 anos em setembro. Pode ter impedido
alguns atentados em território norte-americano. Mas globalmente foi um
fiasco. Foram invadidos Afganistão, Iraque e Líbia, e nenhum desses
países está bem, sendo que os dois últimos se desagregaram, com um nível
de violência assustador.
O que há em comum entre essas duas guerras é, justamente, serem guerras.
A estratégia belicosa não deu certo. Falta discernimento a Washington
para lidar com a vida social. Disso os franceses entendem melhor. Podem
ter uma tendência a intervir militarmente na África que por vezes acaba
mal, como 20 anos atrás, em Ruanda. Mesmo assim, compreendem melhor os
defeitos das estratégias que não passam pela palavra, mas pela força.
E isso depende um pouco da resposta à pergunta inicial: o que está por
trás dos atentados. Se tiver sido uma organização, se reforçará a
postura belicosa. Os Estados Unidos cobrarão da França e dos países
europeus que mandem tropas, que armem policiais, que invistam em
informática. Tudo isso, claro, a alto custo e retirando verbas de outras
áreas, sobretudo as sociais.
Mas, se os assassinos forem perdidos na vida, a questão será como
resolver a sensação de exclusão que leva tantos jovens franceses - ou
europeus, ou mesmo norte-americanos - de cultura muçulmana a procurar um
novo sentido para suas vidas. Um sentido que alguns milhares
encontraram no integrismo islâmico.
Lembrando Godard, que dizia da juventude francesa logo antes de 1968 que
eles eram "os filhos de Marx e Coca Cola", os de hoje são filhos do
islamismo e da modernidade capitalista. Mohammed Atta, um dos assassinos
das Torres Gêmeas, lia pornografia. Um dos autores do atentado de Paris
fumava haxixe. Nada disso bate com o registro integrista. Mesmo assim,
esses híbridos culturais tentaram rejeitar uma parte de sua cultura dual
para ficar só com aquela que lhes desse certezas, identidade,
pertencimento.
Na Europa, é óbvio que se deve atacar as organizações terroristas, mas a
prioridade tem de ser estancar o recrutamento de jovens semi-europeus
para suas fileiras - e para a iniciativa individual de atos micro de
terror. Isso somente se conseguirá valorizando-se a mestiçagem cultural,
que é a condição verdadeira do público passível de ser seduzido pelo
terror. Esse sentido, armas inteligentes e supercomputadores jamais
darão.
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Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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