Livro traz cartas escritas ao longo da história da humanidade.
Do profeta persa Zaratustra ao presidente norte-americano
Barack Obama, missivistas revelam a dor e a alegria do mundo
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 07/01/2015Correspondência do presidente norte-americano Abraham Lincoln está reunida no Arquivo Nacional, em Washington |
Nestes tempos em que a comunicação a distância praticamente só se dá por meio das redes sociais, foram-se embora as cartas, tão presentes na história da humanidade. No Brasil, tornou-se célebre a correspondência de Mário de Andrade com Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião e Henriqueta Lisboa, entre outros escritores. Muito oportunamente, a Geração Editorial acaba de lançar Cartas da humanidade – Civilização escrita à mão. Por meio de 141 textos editados em ordem cronológica, o leitor viaja em cinco mil anos de história.
O organizador do livro é o escritor e compositor mineiro Márcio Borges, autor de Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina. Para realizar o trabalho, ele se baseou em documentação extraída de jornais, revistas, livros e da própria internet. Cartas à humanidade... é um documento precioso, que vale a pena ser conhecido. Abrange um grande período da saga humana, desde muito antes do nascimento de Cristo.
Podem ser lidas cartas trocadas por reis, políticos, artistas, intelectuais, religiosos e sábios. Estas páginas contêm de tudo um pouco: história, religião, dramas, guerras, política, filosofia, amor e ódio. O livro começa com um documento sobre o bem e o mal a partir da visão de Zaratustra, criador do zoroatrismo.
“As influências espirituais de Zaratustra sempre afetaram o pensamento e o raciocínio humanos – sua meta, mostrar aos homens nossa conexão com uma criação e nossa ligação com a fonte única”, explica Márcio Borges. Na primeira estrofe compilada, pode-se ler: “Agora falarei com aqueles que me ouvirem/ De coisas que o iniciado deveria se lembrar/ Elogios e oração da Boa Mente ao Senhor/ E a alegria que verá na luz quem se lembrou dele – o Bem”.
Dos provérbios de Ki-en-gir (Suméria, 2600 a.C.), o autor extrai pérolas: “Quem adquiriu muitas coisas deve vigiá-las de perto”. “A raposa, tendo urinado no mar, disse: o mar inteiro é minha urina”. “Riqueza é difícil de alcançar, mas pobreza está sempre à mão”. “Quem come muito não consegue dormir”.
Um detalhe curioso torna o livro mais atraente. Não é preciso lê-lo em sequência, da primeira à última página. Abra-o na página 383, por exemplo. Lá está a famosa carta- testamento deixada pelo presidente Getúlio Vargas, divulgada depois de seu suicídio, em 1954. “Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa”, desabafa o líder gaúcho.
Outra correspondência histórica: a carta de Pero Vaz de Caminha enviada a dom Manuel, rei de Portugal, logo depois da chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao litoral baiano. “Senhor, posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para bem contra e falar – o saiba pior que todos fazer...!”, relatou o escrivão da armada.
Outro marco da história brasileira, a declaração de renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, em 1961, está no livro. “Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”, desabafa o 22º presidente do país.
A crise deflagrada por Jânio culminou na ditadura militar, que castigou o mineiro Juscelino Kubitschek, outro ex-presidente do país. Em correspondência enviada à amiga e conterrânea Vera Brant, em 1973, JK não esconde a depressão causada pelo ostracismo. “Brasília, nesses anos tempestuosos que o destino me impôs, deprimia-me quando aí, por uma circunstância ou outra, tive de estar. Possivelmente minha capacidade de assimilar vacilasse entre o esplendor do passado, quando então a construímos, e estas intermináveis horas de borrasca.”
O elenco de missivistas é multifacetado: vai de Maria Antonieta e Joana d’Arc a Orson Welles, Fernando Pessoa, Alfred Nobel, Lênin, Che Guevara, Michael Moore e Barack Obama. Coube ao atual presidente dos Estados Unidos fechar as 466 páginas. Em 2008, ao deixar o Senado para comandar a Casa Branca, assim ele se despediu do povo de Illinois, que o elegera: “Hoje termino uma jornada para começar outra”.
A GUERRA
Uma carta que se tornou famosa foi escrita em 1864 pelo presidente norte-americano Abraão Lincoln à senhora Lydia Bixby, cujos cinco filhos morreram durante a Guerra Civil americana. Anos depois, aquelas palavras inspirariam o filme
O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg.
“Cara Senhora
A mim foi mostrada nos arquivos do Departamento de Guerra uma declaração do general adjunto de Massachusetts que a senhora é a mãe de cinco filhos que morreram gloriosamente no
campo de batalha.
Sinto quão fraca e infrutífera deve ser qualquer palavra minha que tente iludir a aflição de uma perda tão subjugante. Mas não posso me conter de enternecer na senhora a consolação que pode ser encontrada no agradecimento da República pela qual eles morreram para salvar.
Rezo que nosso pai divino possa suavizar a angústia de sua perda e deixe apenas a apreciada memória dos amados e perdidos, e o solene orgulho que deve ser o seu por ter deitado tão custoso sacrifício no altar da liberdade.
Seu, muito sincera e respeitosamente, sra. Bixby
A. Lincoln.”
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