A extrema-direita brasileira acaba apoiando o PSDB. É bom ela não ter identidade própria - ou ela contamina o partido tucano?
Cresce a extrema direita no Brasil. Felizmente, tirando os deputados Feliciano e Bolsonaro, tem pouca presença institucional. Mas, de duas uma: ou criará um partido novo, ou continuará numa relação ambígua com o PSDB, que lhe dá votos mas perturba a identidade.
A extrema direita não elege quase ninguém aqui. Para cargos executivos,
menos ainda. Mas se fortalece na expressão de suas ideias. É fraca em
poder, mas avança no berro. Para usar a expressão de Gramsci, disputa a
hegemonia. Degrada o debate no país.
Durante alguns anos, PSDB e PT, representando nossa centro-direita e
centro-esquerda, viveram uma aproximação na prática - ainda que ela
fosse negada no discurso de ambos. Mas nos últimos anos a retórica subiu
em decibéis. Temos um paradoxo: candidato, Aécio Neves prometeu
continuar a política social do PT; reeleita, Dilma Rousseff adotou
medidas econômicas dos tucanos. Portanto, a realidade não os afasta
tanto - mas, na aparência, eles parecem estar quase em guerra. O que
vale, a realidade fria ou a aparência raivosa? As políticas econômicas e
sociais, ou a retórica desenfreada? a razão ou a paixão? Porque guerras
favorecem os extremos.
Onde é mais fácil ver a extrema direita é na internet. Ela povoa os
comentários das redes sociais e das edições online dos jornais. É
incrível o ódio que destila. Há poucos dias, lendo as notícias sobre o
fuzilamento de Marcos Archer na Indonésia, me surpreendeu a quantidade
de comentários atacando o PT, que nada tinha a ver com o assunto. A
maior parte era escrita por pessoas desinformadas da realidade e
desacostumadas ao cultivo da língua. Mas são veementes. Felizmente, não
vão muito além do Facebook e dos blogs.
Ou não iam. Saíram da internet e foram para as ruas nos últimos meses -
numa paródia, em menor, das manifestações de 2013. Pediram que os
militares rasgassem a Constituição e tomassem o poder. No diagnóstico,
erram. Misturam em seu ódio homossexualidade, Hugo Chávez e programas
sociais. Nas suas propostas, nem percebem que o mundo atual não está
para golpes. O que fariam as Forças Armadas, se tomassem o poder? Meio
século atrás, os golpistas tinham uma agenda inteira montada. Os
militares não tinham afeição pela democracia. Os empresários receavam os
movimentos sociais, que avançavam. A economia estava em grave crise. O
governo norte-americano apoiava qualquer golpe de direita na América
Latina. Hoje, nada disso existe. Os extremistas são, literalmente,
reacionários. Querem que o mundo recue. Não têm projeto viável.
Esse público nas ruas e na Internet vai além de seus próprios pregadores
na mídia. Alguns colunistas de jornal chegaram perto de declarar
ilegítima a eleição de 2014, o que é uma afirmação bastante grave de se
fazer numa democracia, mas não lembro nenhum que tenha pedido a
derrubada do governo eleito. Entre os ideólogos e seus seguidores que
foram às passeatas ou escrevem em blogs, há uma distância. Os primeiros
são mais informados, mais inteligentes. Os segundos, não. Apenas
radicalizam.
Mas um problema sério é que essa extrema direita, que tem votado no PSDB
nos momentos decisivos, pressiona nosso partido que porta em seu nome a
social-democracia - uma denominação típica da esquerda - a ir para a
direita. E isso traz alguns resultados. Assim se entende o uso do aborto
na campanha tucana em 2010 ou a ênfase de Alckmin numa política
repressiva de segurança. Esse fato cria problemas de identidade no PSDB,
reduzindo o peso do passado glorioso de Montoro, Covas, Ruth Cardoso. É
óbvio que FHC não deve se sentir confortável com esse avanço dos
extremismos.
Pode essa extrema direita, que é mais forte em São Paulo, mas cujo
tamanho exato ninguém no Brasil é capaz de mensurar, alterar a natureza
do PSDB? Não me parece provável. Ela deve manter seu papel de aliada
subordinada. Presta o serviço de destruir imagens petistas e recebe
alguma compensação midiática por isso. Mas é uma aliada incômoda. Não
gosta dos direitos humanos, com os quais o PSDB histórico tem um forte
compromisso. Não gosta dos programas sociais, dos quais os tucanos não
querem ou não podem abrir mão.
Pior, a extrema direita carrega o risco de convencer demais. Ela ajuda o
PSDB na medida em que reforça o antipetismo de parte razoável do
eleitorado - mas, se crescer em votos, pode fazer os tucanos perderem os
votos de seus eleitores iluministas e, pior, tornar-se dominante em
algumas seções regionais do PSDB, o que poria o partido em sério risco.
Há outra possibilidade, para a qual me alertou o cientista político
português Álvaro Vasconcelos, ora professor visitante no IRI da USP. Sem
o PSDB, a extrema direita pode se tornar um partido próprio, e este
pode ganhar força. É o que sucede na Europa. A Frente Nacional ameaça a
política francesa há anos. Tem uma votação elevada, embora o sistema
eleitoral francês traduza esses sufrágios em pouquíssimos cargos de
efetiva significação.
Mas essa é uma possibilidade remota. Como a extrema direita brasileira,
dado o seu exacerbado antipetismo, acaba apoiando o PSDB, ela não se
organiza para tomar o poder. Prefere operar nas laterais. Sabe que -
hoje - teria poucos votos, se disputasse as eleições para valer. Mas é
preciso fazer constantemente o balanço do que é melhor para o país e
para os tucanos - se é a extrema direita continuar subordinada, sem voz
independente mas podendo minar um partido sério, com história e com
futuro, ou se é ela adquirir voz e identidade próprias, com o risco de
crescer mais. Porque o atual, talvez crescente, desencanto com os
políticos favorece aventuras.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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