segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A delação premiada e a ética - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico 23/02/2014

Usar a delação premiada, contra corruptos e criminosos, em geral é ético? A filosofia pode responder

Há uma grande, quase única maneira de acabar com quadrilhas: é a polícia ou o Ministério Público jogar um membro delas contra outro. Esse conceito está presente na delação premiada, vedete da Operação
Lava Jato, que investiga a corrupção na Petrobras. 


A chave disso é quebrar a confiança. Hoje, qualquer um que participa de um esquema corrupto sabe que pode ser pego. Desde o mensalão do DEM, o melhor é ele gravar, escondido, suas conversas – já se preparando para uma delação premiada. Há tecnologia para tanto. Há mais que isso. As relações hoje são tênues, frágeis. Baumann fala em “amores líquidos”. Todos os vínculos podem se liquefazer. Na hora H, ninguém sabe o que dirá o amigo de infância ou a esposa traída. Ora, a Justiça pode nadar de braçada nesse esgarçamento dos vínculos. Os microgravadores são apenas o meio técnico; a grande razão é essa: a confiança já não dura tanto na vida. Amigos, sobretudo entre bandidos de colarinho branco, são para as horas boas, não as más. O segredo dos investigadores é quebrar a confiança e a lealdade entre os bandidos que não matam com arma branca ou de fogo, mas com dinheiro desviado do orçamento.


O que a filosofia tem a dizer sobre isso? Em nossa área há o assim-chamado Dilema do Preso (uns dizem “do prisioneiro”). Suponhamos dois presos, suspeitos de um crime. Mas não há provas contra eles. O investigador os interroga em separado, sem terem comunicação entre si. A cada um, promete imunidade quase total se entregar o outro; mas, se ele se calar e o outro o entregar, uma pena bem alta. (Nem sabemos se cometeram o crime). A melhor saída é nenhum confessar: saem livres. A segunda melhor, para um deles, é acusar o outro – que terá uma pena severa, enquanto o acusador ficará preso alguns meses. O investigador diz o tempo todo, a cada um, que o outro está a um passo de acusá-lo. A condição para a polícia vencer é nenhum dos dois saber o que o parceiro vai fazer. Lembrem que talvez não sejam criminosos. Podem ser ambos inocentes. 


O melhor é se calar – desde que o outro também fique. Se não, o segundo melhor é ficar preso um ano, acusando o parceiro. Se eu tiver total confiança nele, e ele corresponder, saímos livres. Mas, se não houver confiança?


Este é o padrão do “Law and Order”: apostar na deslealdade. Só que a Lava Jato, como as investigações americanas e italianas contra a Máfia, faz isso em escala macro, complexa. Não é o Estado contra dois. É o Estado contra quadrilhas de corruptos e corruptores. Não é só saber quem matou. É uma rede complexa de negócios, que para ser desmascarada exige expertise. Os investigadores têm de ser ótimos. 


É ético usar da delação premiada? Contra o criminoso, não vejo problema ético. O desvio do dinheiro público não pode ser um crime leve. A delação só penaliza o criminoso no que ele merece. Mas a questão se coloca num outro âmbito. O delator terá a pena reduzida ou até perdoada. Isso é justo? Cúmplices menos culpados sofrerão penas maiores, só porque ele contou primeiro. Isso é duvidoso eticamente. Mas, se fosse para no final das contas calibrar as penas só pelas culpas, a delação não teria sido necessária – ou útil.


A questão remete a uma escola filosófica, o utilitarismo – a escola de pensamento mais seguida, embora pouco mencionada. Imagine que seu carro perdeu o freio. Sua única opção é atropelar cinco pessoas à direita, ou uma à esquerda. A resposta utilitarista é: faça o que matar menos. Ou na economia: você tem que escolher entre uma medida que beneficia cem mil pessoas e outra, boa para dez mil. O utilitarismo recomenda a primeira opção. É quase impossível, na política real, ter de um lado o bem perfeito e de outro, o mal absoluto. Por isso, recomenda-se o menor mal. A política, para ser ética, precisa ser utilitarista.



A delação premiada, então, escolhe o mal menor. Deixaremos solta a Máfia, porque não podemos punir todos na proporção exata da culpa? Deixaremos os corruptos livres, porque seria antiético soltar um chefão que confessou, enquanto encarceramos dez bagrinhos? Nenhuma solução é plenamente justa. Mas qualquer solução pode ser mais justa do que deixar mafiosos matando nas ruas e corruptos matando no orçamento. 


É recomendável, sempre usando termos éticos (e não jurídicos), tomar cuidado. A delação deve ser conferida. Só deve ser premiada se for plenamente veraz. Deve-se evitar soltar chefões demais, condenar bagrinhos em excesso. Mas isso não é fácil. Ganha mais quem pisca primeiro.
Repito: a chave é destruir a lealdade entre criminosos. Muita gente fala em códigos de ética de certos grupos. Dizem que a “ética da cadeia” é estuprar quem cometeu crimes de abuso sexual. Em algumas profissões, vigeu o “código” que era jamais denunciar o confrade, ainda que tivesse prejudicado o cliente ou paciente. Eu, professor de Ética que sou, me recuso a chamar de ética a tais regras de convivência entre criminosos. Mas celebro toda tentativa de introduzir a desconfiança entre os que têm sucesso em suas empresas criminosas justamente porque são desleais com a sociedade, mas extremamente leais entre si. A força da quadrilha está nessa certeza de que cada membro da Yakusa confia nos outros para o que der e vier. Mas não há virtude numa lealdade entre bandidos, que se funda na deslealdade para com a sociedade como um todo, em especial seus membros mais vulneráveis. A delação premiada, sem ser exemplo de uma ética ideal, é porém um recurso necessário para, coibindo os crimes de quadrilhas, tornar mais ética a sociedade como um todo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário