Heliodora, Bárbara
A mais respeitada crítica de teatro do
Brasil, Bárbara Heliodora deixa não só uma lacuna com sua morte, mas
também um importante legado para a cultura nacional
Jota Dangelo
Estado de Minas: 25/04/2015Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, ela foi ensaísta, tradutora, jornalista e crítica teatral |
As artes cênicas perderam no último dia 10 a crítica teatral Bárbara Heliodora. Mais do que uma competente analista de espetáculos teatrais, ela era uma das mais importantes pesquisadoras do teatro brasileiro, defensora intransigente da modernização das artes cênicas no país, posicionando-se desde o início de sua carreira contra os remanescentes do “velho teatro” encastelados na Associação Brasileira de Críticos Teatrais e no antigo Serviço Nacional de Teatro. Uma luta histórica que ficou marcada pelos notáveis textos que a colunista escreveu naquele período.
Nascida no Rio de Janeiro em 29 de agosto de 1923, Heliodora Carneiro de Mendonça ganhou posteriormente o nome de Bárbara e, aos 12 anos, recebeu de presente de sua mãe, a poetisa Ana Amélia Carneiro de Mendonça, uma edição completa das obras de Shakespeare. Durante toda a vida manteve com a obra do bardo inglês uma simbiose existencial, íntima e permanente, que já em 1975, como acadêmica da USP/SP, resultou na defesa de sua tese de doutorado “A expressão dramática do homem político em Shakespeare”, publicada posteriormente em livro.
Consagrada como a maior autoridade do país em Shakespeare, Bárbara Heliodora foi responsável pela tradução da maioria das peças do dramaturgo, além de textos referenciais sobre sua obra, como Falando de Shakespeare, de 1997; Reflexões shakespearianas, de 2004, e Shakespeare: o que as peças contam – Tudo que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos, de 2014.
Fim de jogo
Bárbara Heliodora começou como colunista teatral numa época em que a presença feminina na imprensa, particularmente no âmbito teatral, era, para dizer o mínimo, inusitado. Antes de ela assumir uma posição na crítica teatral, somente duas mulheres haviam exercido a atividade e, mesmo assim, por pouco tempo: Luiza Barreto Leite, ligada ao Jornal do Commércio, e a inglesa Claude Vincent, na Tribuna da Imprensa.
No ofício de crítica teatral, exercida com inteligência arguta, humor ferino e sinceridade dolorosa, sem condescendências em razão de amizades e círculos de convivência no meio teatral, Bárbara atuou na Tribuna da Imprensa (1957 e em 1990), Jornal do Brasil (1958–1964), revista Visão (1986–1989) e O Globo (1990–2014). Foi no Jornal do Brasil que Bárbara Heliodora, pela primeira vez, decide estar atenta ao que se passava nas artes cênicas em Minas Gerais.
Em 12 de dezembro de 1959, aniversário de Belo Horizonte, o Teatro Experimental estava estreando nacionalmente a peça Fim de jogo, de Samuel Beckett, apresentada pela primeira vez em Londres apenas dois anos antes. Era difícil dimensionar para nós, do Teatro Experimental, nossa satisfação em fazer parte de um empreendimento como aquele. Beckett era referência mundial numa nova e surpreendente dramaturgia, iniciada por ele com o sucesso mundial de Esperando Godot, que antecedera a Fim de jogo.
Bárbara Heliodora também estava atenta às novidades cênicas e compareceu à estreia do espetáculo do Teatro Experimental no Teatro de Bolso do Museu de Arte da Pampulha, recém-reformado. No elenco de Fim de jogo estavam Silvio Castanheira, Neuza Rocha, Ezequiel Neves e eu mesmo, com direção de Carlos Kroeber, cenário de João Marschner e iluminação de José Carlos Almeida Cunha.
Senhorita Julia
A segunda proximidade de Bárbara Heliodora com o teatro mineiro ocorreu muitos anos depois, quando Priscila Freire decidiu pela montagem de Senhorita Julia, de Strindberg, com o Teatro Escola da Cruz Vermelha, criado por ela. Algum tempo antes, a requintada crítica teatral tinha apresentado no Teatro Marília, sob sua direção, A comédia dos erros, de Shakespeare, com um grupo do Rio de Janeiro. O espetáculo não fez sucesso, não atraiu o público e nem foi bem recebido pela crítica.
Daise Prates presidia a Cruz Vermelha e o Teatro Marília pertencia àquela entidade. O grupo teatral carioca tinha se apresentado no Marília a convite de dona Daise, razão pela qual a presidente da Cruz Vermelha em Belo Horizonte convenceu Priscila a convidar Bárbara Heliodora para dirigir Senhorita Julia, na tentativa de amenizar, ou reverter, melhor dizendo, o insucesso da comédia de Shakespeare. Não foi uma boa estratégia: Senhorita Júlia foi um fracasso. Mais do que isso: um desastre, no dizer da própria Priscila Freire, particularmente na curta temporada da encenação no Rio de Janeiro.
O relativo insucesso na direção de espetáculos em nada desmerece o talento, o brilhantismo, a competência, o poder analítico e a contribuição notável de Bárbara Heliodora como crítica e ensaísta teatral, como tradutora de textos teatrais e livros antológicos sobre o teatro. Mais do que isso: em maio de 1964, foi convidada para dirigir o Serviço Nacional de Teatro, ao qual imprimiu seu sopro renovador até 1966. Entre 1966 e 1971, dirigiu o Conservatório Dramático Nacional, onde também atuaria como docente, reduzindo sua atividade jornalística. Apenas em 1985 retomaria suas atividades na imprensa.
Formar público
A saída de cena de Bárbara Heliodora tem um sentido histórico. Ela foi a última grande crítica de uma geração de jornalistas culturais que se imbuiu de um objetivo missionário: formar o público por meio de seus textos. Entre estes jornalistas, que fundaram com Bárbara o Círculo Independente dos Críticos Teatrais (CITC) no final dos anos 1950, estavam Paulo Francis (1930–1997), Bricio Abreu (1903–1970), Edgar Alencar (1908–1993) e Henrique Oscar (1925–2003).
Em boa hora, a professora Claudia Braga, doutora em artes pela Unicamp, com pós-doutorado nas universidades de Paris III, Sorbonne Nouvelle e Lyon II, organizou e publicou pela Editora Perspectiva, em 2007, o volume de 948 páginas Bárbara Heliodora – Escritos sobre teatro, registro indispensável da obra crítica e ensaística de uma das figuras mais importantes do universo das artes cênicas no Brasil.
* Jota Dangelo é diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural
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