Êxtase da forma
Mostra de gravuras do Louvre reúne obras-primas de Dürer e do renascimento alemão
Divulgação |
'Adão e Eva', gravura do alemão Albrecht Dürer, que está agora em exposição do Masp |
DE SÃO PAULO
No meio do caminho estava Albrecht Dürer. Mestre da gravura, o artista alemão que viveu na passagem do século 15 para o 16 liderou uma revolução na arte do norte europeu na mesma proporção que o Renascimento italiano.
Sua obra, que aliava o traço apolíneo da figura humana a certa ourivesaria dos detalhes e perspectivas, serviu de ponte entre a arte medieval e os primórdios do romantismo na Europa, fincando sua posição na história como o pivô dessa transição.
Esse momento de diluição dos arquétipos góticos rumo a uma arte menos realista e mais nervosa é foco de uma mostra que o Masp abre hoje, com 61 obras do Louvre.
Vindas do museu parisiense, as gravuras de Dürer e de seus mestres e seguidores ilustram uma revisão de estilos num momento em que a Europa também passava por convulsões sociais, das descobertas da ciência à Reforma Protestante que abalou o poder da Igreja Católica.
"Dürer foi um gênio superior que renovou tudo", diz Pascal Torres, curador do Louvre que organiza a mostra paulistana. "Ele fez uma síntese de tudo que veio antes disso e abriu caminho para um sentido renovado de tudo o que veio mais tarde."
Depois de viagens a Veneza, onde aprendeu noções de perspectiva e anatomia, Dürer injetou um classicismo único na arte nórdica, então dominada pela adesão sistemática a figuras e arquétipos caricatos e por uma dureza dos traços e da expressão.
Em "Adão e Eva" ou em "A Santíssima Trindade", Dürer mostra como foi capaz de priorizar a figura humana em meio a cenários que não perdem a exuberância dos detalhes -da fauna e flora transbordantes às asas dos anjos que rodeiam figuras divinas no centro da composição.
"É um equilíbrio absoluto", diz Torres. "Não há nada que pareça estar sobrando."
Mostra no Masp retrata a arte antes e depois de Dürer
Artista é revisto como elo entre período medieval e o início do romantismo
Escola de Danúbio, como ficou conhecido movimento pós-Dürer, trouxe representações fantásticas da morteDE SÃO PAULO
Embora Albrecht Dürer tenha apontado o caminho de uma representação humana sublime, a expressão pautada pela beleza da razão, a arte nórdica agora no Masp deixa claro que antes e depois do mestre a vida representada nessas gravuras passava bem ao largo da perfeição.
Na obra de artistas pré-Dürer, como Martin Schongauer e Mair von Landhust, prevalece a herança da arte medieval e os temas mais profanos do que sagrados.
Schongauer, um dos mestres de Dürer, está por trás de uma das gravuras mais célebres do período. Sua "Virgem Transtornada" é a representação exagerada do que se entendia por histeria feminina.
"Ela está despenteada, deixa ver o seio, está tocando algo fálico, como um pênis, e seu vestido está aberto na forma de um sexo feminino", descreve o curador Pascal Torres. "São todos acenos à histeria e à sensualidade."
Da mesma forma, Von Landhust retrata cortesãs à espera de clientes num bordel. São expressões que vão do tédio à malícia, humanas e ao mesmo tempo exageradas.
Em "O Bufão e a Cozinheira", o fundo e os ornamentos da gravura ganham uma coloração escarlate, mas os personagens, de expressão exagerada e grotesca, permanecem em preto e branco -o olhar monocromático como símbolo da humanidade intocada pelo êxtase divino.
Na outra ponta dessa evolução, o pós-Dürer, é esse êxtase que parece dominar as composições, que já não seguem a escala clássica nem noções de perspectiva e preferem a exaltação nervosa dos traços e das formas, um estilo que ficou conhecido como a escola de Danúbio.
"Todo esse classicismo alcançado por Dürer se transmite como uma infecção estilística que vai buscar mais efeitos de cores e luzes", diz Torres. "É um expressionismo medieval que se renova."
Nessa renovação, estão nomes como Lucas Cranach, Hans Baldung e Hans Wechtlin. Deste último, o Masp exibe "A Caveira", um crânio com as órbitas oculares mergulhadas num negro profundo que ilustra a morte, uma das peças mais célebres do renascimento alemão.
Baldung retoma a figura da bruxa, tema caro ao período medieval, numa composição de altíssimo contraste, fazendo reverberar contradições da condição humana sob roupagem fantástica.
(SILAS MARTÍ)
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