quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Só no gogó - Ailton Magioli

Só no gogó
 
Grupos vocais brasileiros se dedicam ao canto a cappella e adotam novo estilo, imitando sons de instrumentos musicais. Os Cariocas, Boca Livre e MPB 4 mandam novidades para as lojas


Ailton Magioli

Estado de Minas: 21/11/2013


O sexteto carioca BR 6 tem formação inusitada: uma cantora e cinco vozes masculinas (Martin Jehnichen/Divulgação)
O sexteto carioca BR 6 tem formação inusitada: uma cantora e cinco vozes masculinas


Tradição que fez escola no país graças a pioneiros como Anjos da Lua, Quatro Ases e Um Coringa, Bando da Lua e Demônios da Garoa, os grupos vocais estão em plena atividade. Que o digam MPB 4, Os Cariocas e Boca Livre, que acabam de lançar, respectivamente, os discos Contigo aprendi, Estamos aí e Amizade.

Depois da adesão à performance teatral, que nos anos 1980 transformou grupos como o Garganta Profunda em fenômeno de crítica e público, a última tendência é o canto a cappella. Lançado pelo norte-americano Take 6, o estilo ecoou no Brasil via BR 6, Be Bossa e Gó Gó Boys (Rio de Janeiro), Perseptom (São Paulo), Banda de Boca (Salvador) e Laugi (Brasília), entre outros conjuntos em atividade.

“Volta a prática do coro puro, com a música vocal a cappella”, atesta Neil Teixeira, integrante de Os Cariocas. Por uma década, ele deteve o título de o mais jovem integrante do clássico grupo, posto perdido para Fábio Luna. “O molde agora é o sexteto: um cantor faz a percussão vocal e outro a linha do baixo, enquanto o quarteto restante fica responsável pela harmonia”, explica. Além de resgatar o canto coral, embora em formato reduzido, os novos grupos trazem o inusitado: as vozes imitam instrumentos como a bateria e o baixo.

Recém-chegado da sexta turnê europeia, o BR 6 é adepto de uma formação pouco usual no país, ressalta a cantora Crismarie Hackenberg. “Somos uma mulher e cinco homens. Um deles se responsabiliza pela percussão vocal, motivo do nosso diferencial”, explica ela, ressaltando que a percussão, essencialmente brasileira, inspira-se nos sons de pandeiro, cuíca, ganzá e bumbo.

“Enquanto na música a cappella americana o diferencial está nos arranjos – com uma veia vinda da street dance, do rap e do beat box, imitando a bateria –, o nosso reside exatamente na percussão vocal”, reforça Crismarie. A vocalista diz que essa mudança de concepção tem influenciado artistas de todos os continentes. “O próprio Swingle Singers se adaptou à nova realidade”, observa. Formado em 1962, esse grupo francês foi reconstituído posteriormente em Londres, com novos integrantes.

Crismarie Hackenberg afirma que o BR 6 é diferente. “Fazemos música brasileira, mesmo cantando repertório internacional”, diz, garantindo que o abrasileiramento se dá pelo ritmo. Formado por Deco Fiori (tenor), Marcelo Caldi (tenor), André Protasio (barítono), Symô (baixo), Fabiano Salek (percussão vocal) e Crismarie Hackenberg (mezzo), o grupo é produto do encontro de professores, músicos e arranjadores que cantam sem ajuda de instrumentos.

Com 13 anos de carreira e quatro álbuns – BR 6 for all será lançado em dezembro –, o grupo é detentor de vários prêmios The Contemporary a Cappella Recording Award, considerado o Grammy do setor e concedido pela The Contemporary a Cappella Society. “Trabalhamos sempre com o conceito fusion, mesclando a tradição brasileira a influências latino-americanas, mas com visão cosmopolita”, explica Crismarie. O conjunto reúne três gerações de cantores, que têm de 30 a 50 anos.

Um dos principais problemas desse tipo de formação é a falta de apoio das gravadoras, observa Neil Teixeira, d’Os Cariocas.


Criado em 1942, o grupo Os Cariocas chega renovado ao século 21     (Renata Massetti/divulgação)
Criado em 1942, o grupo Os Cariocas chega renovado ao século 21


Renovação


Integrante do Boca Livre desde a criação do conjunto, no fim da década de 1970, o cantor Zé Renato admite certa renovação na música vocal. Esse fato vem sendo constatado por ele como jurado em festivais realizados no país. “Trata-se de uma tradição brasileira. Por mais que não apareça para o grande público, ela tem continuidade por meio de grupos como o Laugi, de Brasília, liderado pelo maestro Paulo Santos”.

Com Maurício Maestro morando atualmente nos Estados Unidos, o Boca Livre tem feito poucos shows. A agenda foi retomada para lançar o disco Amizade, que chega ao mercado 18 anos depois do último CD do grupo, Americana.

Quem também está de volta ao mercado é o ex-MPB 4 Ruy Faria, que se uniu a Afonso Machado (Galo Preto) e aos filhos de ambos, Chico Faria e Tiago Machado, para gravar Bate bola, disco em homenagem ao futebol brasileiro.

Tradição mineira

Ernani Maletta questiona preconceito (Rodrigo Clemente/EM/D.A Press - 16/5/2012)
Ernani Maletta questiona preconceito


Apesar da renovação constante – surgiram os grupos Voz & Companhia, A Quatro Vozes, Carona Brasil, Boca Frouxa, Amaranto e Cobra Coral –, o canto vocal mineiro anda ausente dos grandes shows. “Isso tem a ver com o tipo de música que a gente faz. No nosso caso, em busca da valorização da polifonia e da multiplicidade vocal”, assegura Ernani Maletta, cantor e regente do Nós & Voz – atualmente “adormecido”, segundo ele.

“Vincular elaboração musical com coisa chata é preconceito”, reage Maletta à alegação de que o gênero não atrai o grande público. “Muitas vezes ouvi de patrocinadores que esse tipo de música é elitizado. Trata-se, na verdade, de uma acusação falsa. Lembro-me da turnê que o Nós & Voz fez em 2003 e 2004 pelo interior do estado – do Triângulo Mineiro à Região Central. Fomos muito bem recebidos, as pessoas ficavam encantadas com os shows”, relembra.

O surgimento de espaços em BH, como o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e o Cine-Theatro Brasil Vallourec, faz o artista vislumbrar dias melhores para a música vocal mineira. O Nós & Voz é formado por Valéria Braga, Márcio Santanna, Mateus Braga, Maurílio Rocha e Gláucia Quites, além de Malleta.

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O fenômeno

O cantor carioca Neil Teixeira explica que, até os anos 1940, o vocal brasileiro era feito intuitivamente, usando a harmonia com apenas três vozes. “Curiosamente, quem revolucionou o meio foi Ismael Neto”, lembra o vocalista, referindo-se a um dos fundadores de Os Cariocas, cujo irmão, Severino Filho, é o único remanescente da formação original. “Ismael era um fenômeno de ouvido. Ele escutava em 78 rotações, tinha conhecimento intuitivo”, relembra o empolgado Neil.

Ao surgir, em 1942, Os Cariocas revolucionou o cenário vocal brasileiro, trazendo para a música popular a condução harmônica a quatro vozes e tornando audição e harmonização mais próximas da música erudita. Com a morte prematura de Ismael (1925-1956), Severino Filho, que estudou com o musicólogo alemão Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005), passou a liderar o conjunto.



Do lado esquerdo
 
O grupo vocal Boca Livre, maduro e consciente do prazer de cantar junto, lança o álbum Amizade. Disco destaca a qualidade musical dos temas, que vão de Gismonti a Edu Lobo

Kiko Ferreira

Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina   (Frederico Mendes/divulgação  )
Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina


“Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito.” E para soltar a voz nas estradas. O quarteto vocal Boca Livre demonstra não ter perdido a cumplicidade, que costuma crescer com quem convive muito tempo, no primeiro CD de repertório novo desde o bem resolvido Americana, de 1995. Amizade, com apenas oito faixas, apresenta quatro senhores grisalhos ostentando a sintonia de sempre, com bons arranjos e os vocais mais agradáveis da música brasileira recente.

Maurício Maestro hoje mora nos Estados Unidos. Zé Renato tem carreira solo de lançamentos com repertórios e objetivos diversificados. David Tygel segue a carreira de autor de trilhas sonoras. Lourenço Baeta, apesar de ter menos visibilidade, mantém seus projetos individuais.

Depois de dois anos dedicados à escolha de repertório e à discussão e definição de arranjos, eles entraram no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, para gravar apenas nove faixas. Uma ficou de fora por falta de liberação de herdeiros dos autores. O CD traz oito canções, entre inéditas e conhecidas por quem acompanha a MPB mais sofisticada.

Ao contrário do álbum de estreia, de 1978, primeiro LP independente a ter sucesso de vendas no país com um conjunto de canções de pegada pop e radiofônica, desta vez priorizou-se a qualidade musical. O grupo nem se preocupou com uma sequência de faixas comerciais. Basta notar que a primeira, Baião de acordar, era a música de encerramento do lado B do LP Corações futuristas, lançado por Egberto Gismonti em 1976. A segunda, Tempestade, de Chico Pinheiro e Chico César, com influência oriental marcada pelo duduk tocado por Zé Nogueira, tem quase seis minutos – e só começa a brilhar no segundo minuto.

Depois da delicada Terra do Nunca, feita por Edu Lobo e Paulo César Pinheiro para uma montagem teatral de Peter Pan nos anos 1990, o disco fica radiofônico com Mistério do prazer (Zé Renato, Cláudio Nucci e Juca Filho), que Zizi Possi havia gravado em 1986, e volta à densidade com Rio Amazonas (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), que abria o denso Brasilian serenata, um dos melhores discos de Dori, e foi relida por Zé Renato e Renato Braz em 2010.

Do Clube da Esquina 2 saiu Paixão de fé, o clássico de Tavinho Moura e Fernando Brant, aqui com feliz e discreta intervenção da guitarra de Jr. Tostoi e do acordeom de João Carlos Coutinho. As maiores novidades dessa pirâmide invertida ficam para o final. Água clara, de Maurício Maestro, é uma guarânia pop arrebatadora. E Amizade, inédita parceria de Maestro e Marcos Valle (que comparece ao piano), é como uma Canção da América suingada e leve, como a sólida relação dos quatro cavaleiros do pós-calipso vocal da MPB.

Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina   (Frederico Mendes/divulgação  )
Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina


 (Biscoito Fino/divulgação)

Clássicos com balanço


Pra que discutir com madame? Enquanto existir o espírito da bossa nova, cada vez mais imortal, haverá espaço para um disco do grupo vocal Os Cariocas. Mesmo que, 65 anos depois da estreia em 78rpm, e com apenas um integrante da formação original (Severino Filho), eles não soem como no princípio ou no auge da carreira, nos anos 1960.

Estamos aí é o primeiro álbum do quarteto com a formação atual, a décima, e conta com Neil Teixeira, Eloi Vicente e Fábio Luna dividindo microfones com Severino, irmão do líder e fundador Ismael Netto. Enfeitado por convidados especiais, o CD foi produzido pelos próprios artistas e apresenta sonoridade capaz de agradar até aos que antes se incomodavam com alguns agudos herdados da influência dos grupos americanos dos anos 1930 e 1940.

Aberto com Madame quer sambar, samba suingado composto por Joyce Moreno, Roberto Menescal e Carlos Lyra como uma espécie de continuação do clássico Pra que discutir com madame? (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa), o CD traz vários standards brasileiros. Transformado em quinteto com a participação do ex-integrante Hernane Castro, o grupo soa clássico na leitura de Eu e a brisa (Johnny Alf) e faz bela homenagem a Magro, do MPB 4, dialogando com um contido Chico Buarque e sua Januária. Depois do clima de night club com Que maravilha (Jorge Benjor e Toquinho) e da bela versão a cappella de Marina (Caymmi), o quarteto faz leitura quase solene de Vera Cruz (Milton e Márcio Borges) e esbanja delicadeza em A noiva da cidade (Chico e Hime), com Francis Hime ao piano.

A felicidade (Tom e Vinicius), com uníssono de baixo e piano abrindo caminho diferenciado para o clássico da bossa nova, surge antes do flerte bem-equacionado com a harmonia mineira em O amor em movimento, de Chiquito Braga e Ronaldo Bastos, com direito à guitarra imortal de Chiquito.

Para fechar o “espetáculo”, Leny Andrade aparece com o pique costumeiro para duelar com o grupo em seu maior sucesso, Estamos aí, prova de que os veteranos ainda marcam presença com consistência e elegância. (KF)

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