quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Marina Colasanti-O que sabem de nós?‏


O que sabem de nós? 
 
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 19/12/2013 




Engarrafamento na estrada, uma obra qualquer pela frente ou um acidente. Carro parado, olho para fora, observo. E meu olhar se concentra numa fila de formigas.

Avançam na beira da estrada, entre mato e asfalto, aproveitando a proteção de um e a lisa superfície do outro. A fila compacta e organizada é dupla. Há as que caminham já levando uma carga e as que vêm em sentido contrário, sem nada. Imagino que estejam indo buscar seu lote de serviço, mas podem ser vigias ou soldados protetores. Pouco sei da vida das formigas.

O que elas sabem de nós? Ali estamos, igualmente em fila dupla, uma que vai e uma que vem. E também, a nosso modo, vamos carregados e em busca de comida. Nós também, embora parados, estamos trabalhando. E o trabalho ocupa a quase totalidade do nosso cotidiano. As formigas, pelo menos, não têm que enfrentar engarrafamentos.

Fizeram com um graveto uma mínima ponte para atravessar aquilo que para elas deve ser um rio caudaloso, filetinho de água que mal vejo. Não estudaram engenharia, não viram o filme A ponte do Rio Kwai, em que prisioneiros ingleses subnutridos constroem uma ponte estratégica em apenas dois meses (a empresa inglesa que a construiu para o filme levou oito), mas arrastaram o graveto e passam firmes por ele. Ganham a engenharia de graça, no DNA, como comprova a excelência dos formigueiros, mas é provável que nem saibam disso.

Na fila dos carros parados, certamente, sou a única que se deleita observando formigas, tão próxima delas como se estivesse deitada ao seu lado. Nem quero que o trânsito ande. Haverá naquela fila de trabalhadoras uma que levanta o olhar, sob a carga tão grande, e olha para a nossa fila como olho para a dela? Como nos veem as formigas? Um carro é para elas uma máquina ou uma montanha que se move? Reparam, agora, que aquelas montanhas metálicas que sempre passam em movimento estão paradas? Estão atentas ao barulho dos motores? O cheiro lhes chega? Ou caminham tão tomadas pela sua tarefa e pela obediência à fila que não podem gastar conosco sua atenção?

Olho as formigas e me surpreendo com tantas convivências mal traçadas. Intimidade zero entre os humanos e as criaturas tantas que povoam nosso mesmo espaço. Como habitantes de um enorme edifício, entramos e saímos do elevador da vida sem cumprimentar nossos coinquilinos, mais que vizinhos. E sem considerar a semelhança. Cada um na sua, é assim que a carruagem anda.

E, no entanto, vivemos tão próximos. Não há quintal, vaso de planta, azulejo de cozinha, onde, em algum momento, não transitem formigas. No 16º andar, onde vivo, são moradoras ocultas e constantes. Eu as deixo estar, mas por vezes acabo passando um pano úmido por cima delas e elimino uma fila inteira num só gesto, genocida justificada pela higiene.

A bem dizer, só as incorporamos como símbolo. Quantos contos, quanta presença em canções e poemas! E nem aí lhes fazemos justiça. Ao tomá-las como símbolo do trabalho, as despimos de qualquer encanto. No nosso fabulário a formiga só aparece como uma semiescrava moralista, pronta à repressão, antipática, e que não canta.

Move-se afinal a fila dos carros. Adiante saberei que um caminhão havia capotado, verei a carga de alimentos espalhada. Que farra para as formigas! 

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