Pais e filhos, do diretor japonês Hirozaku Kore-eda, leva para as telas o drama de casais que tiveram filhos trocados na maternidade. Situação ainda é registrada em hospitais brasileiros
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 14/01/2014
Em Pais e filhos, além da questão familiar está em cena uma visão crítica da competitiva sociedade japonesa contemporânea |
“Troca de bebês? Mas isso ainda acontece?”, indaga o ambicioso arquiteto Ryota, interpretado pelo ator Masaharu Fukuyama, quando descobre que não é pai de Keita, um menino de 6 anos. Apesar de esse questionamento fazer parte de uma produção de ficção — no caso o longa-metragem Pais e filhos, que estreou há três semanas no Brasil —, a história não está restrita ao cinema. “A gente acha que essas coisas só acontecem em filme, novela ou livro. Mas, infelizmente, não é bem assim. É real. Aconteceu comigo e poderia acontecer com qualquer um. E não foi fácil. Foi uma experiência bem sofrida e traumática”, desabafa a professora Iracema da Glória Soares, de 45 anos.
A convite do Estado de Minas, ela assistiu a uma sessão da obra do diretor japonês Hirozaku Kore-eda, que está em cartaz no Belas Artes. Iracema se identificou bastante com a história comovente e polêmica e chegou a perceber algumas semelhanças com seu caso. Em 1990, a professora, que mora em Sete Lagoas, engravidou de sua primeira filha. Chegou a registrá-la como Ana Paula. Porém, quando deixou a maternidade, carregava outra menina nos braços sem saber. Quando o bebê completou seis meses de vida, amigos, familiares e os próprios pais começaram a notar como a criança era diferente de Iracema e de seu marido. “A gente estranhou que a minha filha não parecia com ninguém. Ela era mais moreninha e foi nesse período que as diferenças físicas começaram a se acentuar. Achava que ela devia se parecer com algum dos meus avós. Era uma forma de justificar o fato de a menina não se parecer comigo e nem com o meu marido. E as pessoas comentavam tanto, que eu e meu esposo passamos a não sair mais de casa. Perguntavam se a criança era adotada, coisas desse tipo. Estava ficando insuportável”, lembra.
Foi quando a mãe de Iracema resolveu, ao lado de uma amiga que trabalhava como voluntária no hospital onde o bebê nasceu, investigar a história. Elas levantaram todos os dados e endereços das 12 meninas que tinham nascido naquele dia na maternidade. Bateram de porta em porta e quando chegaram na casa de uma delas, em um bairro bem afastado de Sete Lagoas, viram que os pais não pareciam em nada com a criança. Entraram em contato com o pessoal do hospital e ficou praticamente definido que tinha havido uma troca. “Quando minha mãe me contou a história, fiquei louca. Cheguei a ser medicada. O impacto foi muito grande, porque, por mais que eu desconfiasse que tinha algo errado, uma pessoa chegar para você e falar que sua filha não é sua filha... Fiquei desesperada e não queria entregar a menina de jeito nenhum. Foi com ela que saí da maternidade nos braços. E a outra mãe também relutou e disse que não ia trocar de jeito nenhum”, conta.
A mesma situação ocorre em Pais e filhos. No entanto, no caso do filme, os filhos já estão com 6 anos. “Quanto mais velha for a criança, mais complicado fica, até porque nessa fase da vida é que vai se constituindo toda a estrutura psíquica. Tudo isso tem que ser analisado, principalmente se essa criança terá um lugar no desejo dos pais. Qual o casal que realmente está demandando essa criança”, explica a psicanalista Inez Lemos.
CULPA Quando Iracema resolveu conhecer sua verdadeira filha, não teve dúvidas e se identificou imediatamente. O mesmo se deu com o outro casal. De maneira amigável, resolveram destrocar as meninas. No começo, ela admite que sentiu muito mais a perda do que o ganho da verdadeira filha e chegou a ter crises de depressão e a procurar ajuda psicológica. “A criança estava com 9 meses quando isso aconteceu. Já tínhamos criado um laço afetivo. Ela foi a minha filha durante aquele período. É uma coisa que pode destruir uma família. Não foi fácil. Depois de um tempo, engravidei novamente e fui parir no mesmo hospital. Cheguei a pensar se realmente era certo ter o meu bebê ali, mas refleti: não é possível que um raio caia duas vezes no mesmo lugar. A logística foi completamente diferente e esse tipo de coisa é muito difícil de se repetir”, acredita.
A professora sete-lagoana confessa que durante muito tempo se sentiu culpada de não ter reconhecido a própria filha e de como o caso ocorreu – o mesmo se dá no longa de Kore-eda, em que uma das mães fica se martirizando pela troca –, mas que hoje consegue lidar bem com a história. Apesar de passados 24 anos, Iracema ainda mantém um relacionamento com a menina que criou durante nove meses e assegura que nenhum dos bebês teve sequelas físicas ou emocionais em decorrência da troca.
“Carreguei essa culpa por muito tempo. Ela nasceu, eu estava meio grogue da anestesia e tal. E no outro dia era outra criança e não percebi. Foi um martírio durante muito tempo. Mas se hoje consigo contar a minha história é porque a coisa já é bem mais tranquila. E para que sirva de alerta para outros. Acho que estou prestando um serviço. As pessoas têm que ficar atentas, mesmo na hora de identificar a criança, prestar atenção se foi devidamente identificada. E, se possível, ir mais gente com você ao hospital e não só o marido, como foi o meu caso. Os bebês nascem muito inchados, parecidos, é uma questão de alerta mesmo”, diz.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
. Inez Lemos, psicanalista
Linguagem dos sentimentos
Achei Pais e filhos bárbaro. O filme discute a função paterna e seus desdobramentos e vai além da questão biológica – se em casos como esse devemos ou não realizar a troca dos filhos. Ele aponta a questão para o contexto familiar, a forma como a criança está sendo educada, como ela está sendo inserida no mundo dos sentimentos, emoções, afetos. A complicação sempre surge da imaturidade emocional dos adultos, no caso, do pai: executivo no Japão, país da excelência, disciplina e culto ao trabalho, à vida profissional. Um pai que não se implicava na função de pai – ausente, frio, travado emocionalmente. Ele próprio, vítima de um pai também assim. Enfim, a questão do sangue é apenas um pano de fundo para se debaterem outros temas maiores. Sendo o amor um efeito da convivência, e essa sendo de qualidade, banhada de afeto, alegria, dedicação e bom humor, toda criança estará bem acolhida. O casal de menor poder econômico esbanjava tudo isso. Portanto, eles acolheram muito bem o novo filho, que chega com 6 anos, mas logo percebe o essencial: sentir que ele ocupava um lugar no desejo dos novos pais, o que não ocorreu com o outro, cujo pai ainda não sabia ser pai e cumprir com a paternidade, que exige sabedoria, implicação e desejo. Infelizmente, coisa que poucos sabem. Contudo, não há uma resposta pronta e objetiva quando a questão envolve aspectos subjetivos. Destrocar ou não? Talvez sim, talvez não. Deve-se sempre levar em consideração onde a criança é melhor amada, acolhida. A questão financeira não deve prevalecer, devemos respeitar a linguagem dos sentimentos.
O FILME
Produção japonesa do diretor Hirozaku Kore-eda, Pais e filhos conta a história de um homem de negócios obcecado pelo dinheiro e pelo sucesso. Sua vida sofre grande transformação quando ele descobre que está criando o filho de outro homem há seis anos, já que seu filho biológico foi trocado na maternidade. O filme foi selecionado na competição oficial do Festival de Cannes, em 2013, e levou o prêmio especial do júri. O longa-metragem está em cartaz nos cinemas brasileiros desde 27 de dezembro e teve até agora público aproximado de 9 mil pessoas.
Entre o sangue e o afeto
Ana Clara Brant
Iracema da Glória Soares faz questão de alertar mães e pais sobre a troca de bebês |
O diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), João Batista de Oliveira Cândido, explica que nesse casos, quando a descoberta se dá logo e não houve ainda o registro da criança, fica mais fácil resolver, mas, do contrário, é necessário medida judicial. O advogado afirma que deve se promover uma anulação do registro e que isso costuma ser um pouco complicado. No entanto, destaca que o maior problema é desfazer o vínculo de afetividade que foi criado e, quanto maior o tempo, mais difícil fica. “Se houve realmente a troca na maternidade e o DNA comprova, o juiz vai dar sua sentença. Mas cada caso é um caso. Não se pode generalizar. Hoje em dia, os vínculos afetivos são muito valorizados no plano da Justiça. A noção da maternidade e paternidade não está diretamente ligada ao plano biológico e sanguíneo. Antes de qualquer coisa, deve-se levar em conta o interesse da criança”, frisa.
João Batista Cândido lembra que, mesmo menos frequente, ainda há casos de troca de bebês, especialmente em hospitais menos organizados. E que, quando ocorre, há desdobramentos tanto no aspecto cível quanto penal. “A indenização é cabível e pode ser por danos morais ou materiais, dependendo das circunstâncias. E nesses casos, o hospital é que é responsabilizado pelo ato. O valor varia muito e pode ser de R$ 10 mil até R$ 200 mil. Nada que vá mudar a vida de alguém. Acho importante alertar os pais para evitar esse tipo de problema, ficando atentos à questão da identificação. Assim que nascer, ficar de olho se o bebê está com uma pulseirinha ou outra forma de identificar. Isso é importante”, recomenda o advogado.
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