VALOR ECONÔMICO - 06/01/2014
A
Europa desenvolvida tornou realidade, na metade do século XX, direitos
sociais relevantes. Ninguém precisa perder o patrimônio para ser tratado
de uma doença séria, ou gastar boa parte de sua renda para se
locomover. É isso o que chamo um país "dar certo". Os efeitos não são só
materiais. Também explicam por que as pessoas não furam fila nem
invadem o acostamento: sabem que há lugar para todos, que a demanda
atende à oferta. Não temos isso no Brasil.
Uma discussão do tema,
no Facebook, sugeriu que a centro-direita (ou os liberais, como
preferem ser chamados) parece mais consciente, do que a centro-esquerda,
da premência deste nosso desastre social. Reconhecer um problema é um
passo para resolvê-lo. Só que a centro-direita propõe soluções que não
levam em conta, ou só levam em conta enquanto obstáculo, não como
oportunidade, a complexidade política de implantá-las.
Parte-se
da crença de que a economia brasileira está em séria crise. As políticas
distributivistas do PT teriam estancado o espírito de iniciativa
empresarial. Seria preciso devolver - ou criar - condições para uma
forte expansão econômica. As medidas sugeridas reduzem o papel do
Estado, aumentam a concorrência, favorecem a contratação de empregados
(isto é, favorecem sua demissão: o diagnóstico é que não se contrata por
receio da burocracia que cerca o desligamento do funcionário).
Essas análises estão certas, estão erradas? Não discutirei aqui. Mentes brilhantes as endossam. Mas trazem problemas políticos.
O
primeiro está no próprio enunciado da questão que coloquei - do que o
Brasil precisa para "dar certo". Os liberais acreditam saber o que falta
para o País atender à demanda da rua por transporte, educação, saúde e
seguranças decentes - mas suas propostas não vão além de fórmulas
teóricas. Na política a teoria é necessária, mas insuficiente: o
fundamental é construir, politicamente, as medidas que levem numa
determinada direção. Explico.
Em 1994, o País estava travado,
tanto pela inflação quanto pela indefinição de quem investiria, o Estado
ou a iniciativa privada. Tendo domado a inflação graças ao Plano Real,
FHC também venceu as resistências à privatização. Poderia ela não ser a
melhor solução, certamente não era a única, mas foi a que ganhou apoio
político. Já em 2002, o descontentamento com a desigualdade social
permitiu que Lula mudasse o rumo de nossa política. Nos dois casos,
houve demanda e liderança políticas. Mas hoje, quando nossos liberais
propõem reformas econômicas para resolver sérios problemas sociais, não
as traduzem em linguagem política. Ficam na teoria. Daí que lhes seja
fácil responder a uma pergunta como a minha, às vezes até ironizando sua
suposta ingenuidade, mas que não consigam fazer a teoria deles passar à
prática. O problema é que, na política, a melhor teoria vale pouco, se
não trouxer resultados.
O segundo problema é que a pasta dental
não volta para dentro do tubo. Desregulamentar o mercado de trabalho
para fazê-lo crescer causa desconfiança. Como convencer as pessoas de
que terão mais e melhores empregos, se não tiverem garantia nenhuma
deles? A inclusão social dos últimos anos, embora tenha se dado mais
pelo consumo do que pela educação ou cultura, trouxe exigências
irreversíveis. Pelo menos enquanto estiver no horizonte o consumo dos
bens de consumo necessários (o iogurte de FHC, a geladeira de Lula
etc.), não há condições políticas de sustá-lo. Haja China para nos
exportar tudo isso, a preço que os ex-miseráveis possam pagar... Mas
dificilmente alguém ganhará uma eleição sem aumentar o consumo, o que
significa ampliar o crédito ao consumidor, o que implica ir na contramão
do que os liberais pregam. Não interessa aqui se eles têm razão ou não;
o ponto é que seu discurso não terá apoio político.
Política não
é ter razão. Aliás, hoje a centro-direita acredita estar certa e se
irrita porque os eleitores não votam nela; só que, vinte anos atrás, era
o PT que se sentia assim. Recordar é viver.
Mais um problema. As
demandas que hoje prevalecem são sociais, mas as propostas das
oposições são essencialmente econômicas. O que é lógico, se elas
consideram que a economia está em frangalhos e não sustentará nem o que
existe, quanto mais uma expansão do gasto (ou investimento) social. Mas a
economia é, quando muito, um meio, enquanto construir uma sociedade
justa é um fim, o mais importante dos fins que nos podemos propor. Em
especial, não se percebe que, como o cobrador do conto homônimo de
Rubens Fonseca, estamos cansados de esperar, e os mais pobres mais que
todos nós. Se alguém disser que, para se chegar à elementar justiça
social, será preciso dar uma longa volta - seja pelo estatismo, seja
pelo neoliberalismo - dificilmente ganhará a confiança do eleitorado.
Estamos fartos de desvios que acabaram se eternizando.
Talvez por
isso as pesquisas, que mostram a maior parte da população sequiosa de
grandes mudanças, não beneficiem a oposição. (O governo é o favorito,
não só pelo balanço de uma inclusão social que se realizou sem custos
para as classes abonadas, como por ter oposições menos atentas do que
deveriam à realidade social). Mas pode ser que em 2014 algum candidato a
governador inove, propondo em termos concretos e confiáveis uma agenda
que contemple transporte, saúde, educação e segurança públicos. Ou em
2016, alguns candidatos a prefeito despertem para as reivindicações
populares. Penso que serão excepcionais: isto é, poucos em quantidade e
altos em qualidade. Mas poderão renovar o panorama político brasileiro.
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