sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Carlos Herculano Lopes - Noite adentro‏

Noite adentro
Carlos Herculano Lopes


Estado de Minas: 07/02/2014




Há poucos dias, dois colegas de trabalho, até então estranhos um ao outro, que só se encontravam nos corredores da empresa, sem nunca ter trocado palavra, se pegaram conversando, como às vezes acontece em situações assim. Estavam de plantão, que só terminaria na manhã seguinte, se nada grave ocorresse, como esperavam. Dona de olhos negros, guardados por sobrancelhas rasgadas, aquela moça, que aqui vamos chamar de Débora, aos poucos, como ele, foi abrindo seu coração.

Todo ouvidos, aquele homem, muito mais velho do que ela – mesmo não sabendo quantos anos tinha Débora – a ouviu dizer, entre outras coisas, pois aquele papo se estendeu noite adentro, que vivia com a mãe, filha de italianos. “Ela e meu pai se separaram muito cedo, quando eu ainda era criança, e foi ela quem nos criou, a mim e ao meu irmão, que é um ano mais novo que eu. Naquele período, que foi muito difícil, a gente vivia numa cidade do interior, na Zona da Mata, onde nunca mais voltei”, disse.

Aquela moça, que parecia ser uma pessoa determinada, com certeza do que queria da vida, contou ainda, sem disfarçar o orgulho, da admiração que sentia pela mãe, apesar das desavenças. Das brigas que às vezes, por uma coisinha ou outra, aconteciam entre as duas. “Mas a compreendo, ela tinha menos de 30 anos quando o velho se foi e teve de se virar sozinha, fazer das tripas o coração para nos manter.”

Nos primeiros tempos, como aquele homem também ficou sabendo, a mãe da sua colega, que até a separação só ficava em casa, cuidando dos filhos, trabalhou como secretária de um advogado conhecido da família, e depois em uma concessionária. Mais tarde, como representante comercial e em algumas outras funções, até as coisas irem tomando pé, a vida aos poucos ir chegando nos eixos.

“No meu caso, também tive de ir à luta. Com 17 anos consegui o primeiro emprego numa loja de aparelhos eletrônicos, pois passei no vestibular e precisava pagar a faculdade, que era cara. E comecei a ajudar em casa, pois minha mãe não estava dando conta de bancar tudo sozinha”, Débora ainda contou.

Enquanto falava, o homem percebeu que os olhos daquela moça, que é muito bonita, às vezes ameaçavam ficar marejados. Então, ela fazia uma pausa. Olhava para o colega e começava a sorrir. Depois voltava-se para o computador ou dava alguns telefonemas, para ver se algo de importante estava acontecendo. E prosseguia: “Um dos meus objetivos, vou te contar, é conseguir dinheiro para dar entrada num apartamento, pois estou querendo morar sozinha, já está na hora”.

Noite adentro, como nada de relevante se passava a não ser as pequenas tragédias de rotina, com as quais todos estão acostumados, aquele homem, que estava ali dividindo plantão com a colega, para ele não mais uma estranha – como se a conhecesse desde sempre – a ouviu contar ainda, cheia de sonhos, da vontade de também poder fazer doutorado, trocar de carro, morar uns tempos nos Estados Unidos... Tudo isso enquanto a madrugada, sem que percebessem, começava a chegar.

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