Liberdade de escolher
A vizinhança do tigre, do mineiro Affonso Uchoa, foi o destaque da 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes, marcada pela exibição de filmes sobre relações entre pessoas do mesmo sexo
Carolina Braga *
Estado de Minas: 03/02/2014
No encerramento da mostra, a equipe que trabalhou no longa A vizinhança do tigre foi muito aplaudida pelo público no Cine Tenda |
Tiradentes – Não há como não reconhecer que foi um rebu. Sim, o beijo de Niko e Félix no capítulo final da novela Amor à vida, da Globo, teve aplauso em bar, virou sensação nas redes sociais e tema de conversa. Mas, se o próprio Félix estivesse entre nós, ele soltaria um sonoro “hellooo” para acordar a sociedade. Mesmo com toda a carga histórica que a cena possa ter, o tema é importante, mas velho e ultrapassado, pelo menos para a galera que faz o cinema brasileiro. Não é de hoje que a Mostra de Cinema de Tiradentes reflete isso. Repulsa do público? Que nada.
Vencedor do prêmio aquisição do Canal Brasil (TV paga), com exibição garantida nos próximos dois anos na telinha, o curta Quinze, de Maurílio Martins, mostrou por aqui a relação de duas mulheres, às vésperas da festa de 15 anos de uma delas. A discussão sobre pais homossexuais também ocupou a tela do Cine Praça no curta documental Meu amor que me disse, de Cátia Martins Nucci. Até o amor entre Batman e Robin saiu do armário no longa Batguano, do paraibano Tavinho Teixeira, um dos concorrentes da Mostra Aurora. Tudo nesta 17ª edição.
Lirismo
“É um casal como outro qualquer. Duas pessoas que se gostam. Acho que ser um tabu na TV é ridículo porque isso é uma coisa que faz parte da vida da gente”, disse a estudante de cinema Maria Vitória Oliveira, na saída da sessão de O uivo da gaita, de Bruno Safadi. “Esse filme é um ótimo exemplo de como poetizar qualquer tipo de relação, independentemente se é homem ou mulher”, completou a também estudante Andrea.
Com Leandra Leal e Mariana Ximenes como protagonistas, O uivo da gaita é o tipo de produção que poderia sim dar o que falar para os moralistas. No longa exibido na tarde de sábado, Antônia (Mariana Ximenes) tem um companheiro, Pedro (Jiddu Pinheiro), mas se apaixona por Luana (Leandra). Eles até que tentam uma relação a três, mas a atração entre elas não deixa espaço para o homem. Isoladas, elas se permitem ter uma relação íntima, de entrega. O modo como as cenas são filmadas deixa clara a escolha pela delicadeza e o lirismo em cenas de beijos e sexo.
“Entendo que seja mais complicado para a televisão chegar a esse lugar, somos um país continental. Mas ao mesmo tempo acho que tem o dever de fazer isso, mostrar com naturalidade, como uma escolha do amor. Sempre falei que achava um absurdo ser permitido dar um tiro, matar, esfaquear e não duas pessoas se beijarem em um ato de amor”, argumenta Leandra Leal. Ela, que planeja estrear como diretora no próximo ano, se diz surpreendida com a “caretice brasileira”.
Atualmente Leandra Leal está montando seu primeiro documentário. Para chegar a esse ponto com Divinas divas, que registra a trajetória de oito travestis brasileiros, precisou recorrer a financiamento colaborativo, tipo crowdfunding, porque foi impossível conseguir patrocínio. “É muito triste que ainda hoje no Brasil a questão do gênero seja um tabu e a questão da velhice também. É um preconceito muito enraizado no Brasil”, reconhece.
Mariana Ximenes e Leandra Leal estrelam O uivo da gaita, que fala do amor entre pessoas do mesmo sexo |
Provocação
Para Maurílio Martins, diretor de Quinze, é de se lamentar o fato de um beijo gay na televisão ter tamanha repercussão. “Assusta-me quando a televisão toma isso como uma questão: um beijo entre dois personagens masculinos ser uma notícia. Como a nudez ainda é uma questão na televisão, o corpo ainda é uma questão”, critica. O desejo dele era fazer um filme sobre mulheres. Desde que o roteiro ficou pronto, em nenhum momento o fato de ter um casal lésbico na trama foi tema de conversas. “Quando as pessoas da minha casa viram, não teve nenhum comentário. Tenho uma mãe de 73 anos e sobrinhos adolescentes que viram. Por essa percepção de família acho que para o cinema não é uma questão.”
“O público não está preparado para quê? Para as pessoas serem, existirem”, desabafa o diretor paraibano Tavinho Teixeira. Figura bem-humorada, o diretor produziu e protagonizou Batguano, sobre a relação de amor de Batman e Robin, dois ícones da cultura pop. O longa, que se passa em 2030, tem cenas ousadas do romance dos dois. “A função do cinema é justamente quebrar os paradigmas e toda essa moralidade cristã que a televisão ressalta”, proclama.
Tavinho observa com ironia toda a discussão gerada em torno do desfecho de Félix e Niko. “Hoje é moderno ser gay. É engraçado, é como se a TV tivesse aceitado”, diz. Como lembra, o primeiro casal lésbico da telinha gerou tamanha repulsa em alguns setores que foi preciso aniquilar as personagens de Christiane Torloni e Silvia Pfeifer em Torre de Babel. Eis que 15 anos depois o vilão da novela das nove se arrepende de seus erros e vira o mocinho da trama ao lado do companheiro.
Batguano, O uivo da gaita e Quinze são produções que mostraram relações entre pessoas do mesmo sexo nesta edição da Mostra de Cinema de Tiradentes sem carregar qualquer bandeira. É a vida. É natural. “Não é uma questão, é uma condição. Afirmar a vida até o último oxigênio. Estamos aqui, que experiência incrível é esta de existir”, resume Tavinho.
Formando plateias
Mais uma vez a Mostra de Cinema de Tiradentes reafirmou sua escolha em ser espaço para o cinema com investigação de linguagem, pesquisa e rompimentos com padrões. É necessário que existam espaços assim no calendário de festivais no Brasil, seja para escoar a produção de novas gerações, seja para descobrir os nomes que darão continuidade ao cinema nacional. Mas a cada edição há algo a considerar em relação ao público de Tiradentes.
Sabe aquele senhor que mora na cidade e aproveita uma única temporada do ano para ir ao cinema? Pois é. Existem dúvidas se ainda há espaço para ele na programação, por mais que os filmes exibidos no Cine Praça tentem cumprir essa função. Será que a obsessão pelo novo, pelo diferente, não estaria afastando quem é da cidade e sempre esperou janeiro chegar para se encontrar com o cinema? Será que há como o jovem cinema de invenção conviver com produções mais acessíveis àqueles que não têm tanta referência cinematográfica? Que tal procurar o equilíbrio na diversidade da produção brasileira?
De acordo com a organização da mostra, 35 mil pessoas passaram por Tiradentes durante os nove dias do evento. Foram exibidos 134 filmes em 54 sessões, no Cine Praça, Cine Tenda e Cine Teatro, todas com entrada franca. Além disso, foram realizados 22 seminários que tiveram os filmes ou o processo de produção no centro das discussões. Prestes a alcançar a maioridade, a Mostra de Cinema de Tiradentes é um evento consolidado no calendário. Que continue apostando no novo, mas sem se esquecer daquele público .
Vizinhos
O retrato ousado de um grupo de amigos da periferia da cidade mineira de Contagem abordado em A vizinhança do tigre fez de Affonso Uchoa o grande vencedor da 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O longa foi escolhido melhor filme pelo Júri da Crítica e pelo Júri Jovem e levou o Prêmio Itamaraty, no valor de R$ 50 mil, além de serviços e materiais cinematográficos dos parceiros da mostra. Branco sai preto fica, de Adirley Queirós, ganhou menção honrosa de ambas as comissões. O curta vencedor da Mostra Foco foi E, de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos. O Júri Popular elegeu respectivamente o curta Diários daltônicos, de Patrícia Monegatto, e o longa Cidade de Deus: 10 anos depois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal.
* A repórter viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes
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