domingo, 30 de março de 2014

EM DIA COM A PSICANÁLISE » O amor que a gente inventa‏

Ela, de Spike Jonze, toca em aspectos importantes do amor e do desejo



Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas: 30/03/2014



Por mais que falemos de amor, ainda assim faltam-nos palavras para descrevê-lo. Este é o provável motivo para continuarmos sempre falando dele. Relançamos frequentemente nossas inquietações a respeito do amor.
No teatro, na poesia, na literatura, no cinema, na vida, tudo gira em torno do amor e das nossas relações. É um dos motivos constantes das nossas vidas de humanos. De que é feito o amor? Seria ele real ou uma ficção de cada um?
As mulheres são as mais propensas a falar de amor. Precisam ser desejadas. Querem falar de amor enquanto eles querem fazer. É próprio do feminino amar o amor. O homem faz a mulher a sua maneira. Deseja um suporte para sua fantasia e não precisa de tantas palavras.
Definir o feminino é impossível. Ele guarda mistérios. Gira sinuoso em torno de nós e escapa a cada palavra definitiva que pretenda capturar seu sentido pleno. Ninguém respondeu à questão: o que quer, ou o que é uma mulher?
O encontro, portanto, entre o homem e a mulher é o encontro de diferenças. Lacan dizia que entre um homem e uma mulher existia um “a-muro”. Criamos nossos romances particulares fantasiando sobre o outro como depositário de nossa expectativa, revestido e portador de tudo que ansiamos. Por um tempo se sustenta a felicidade.

O tempo trata de desmentir o par perfeito e faz ver a diferença entre desejos que jamais serão um. Mas não importa. Queremos amar e ser amadas. Queremos nos apaixonar e sair por aí rindo à toa. E que seja um engano eterno enquanto dure.

Numa relação, uma das imposições que a mulher faz ao homem em sua forma de amar é que ele fale, assim podemos dizer que o homem ama de modo feminino, pois precisa ter acesso à mulher e é falando com ela que o faz.
O filme Ela, de Spike Jonze, é uma demonstração interessante e original que foge do lugar comum das comédias românticas. Ele fala de amor e de como o amor é feminino. Jonze consegue construir um futuro verossímil e uma interação entre homem e inteligência artificial, que encarna de um modo estranho o anseio de um amor perfeito a nosso alcance. O amor é tocante e devastador ao mesmo tempo.

O filme toca pontos de impossibilidade do amor e da relação amorosa entre um homem e uma mulher, cujas diferenças fazem impossível um amor perfeito, completo. Não é assim? Só que ali a mulher é apenas uma voz que atende ao que o usuário espera dela. As mulheres podem também ser assim na realidade.

A voz reflete algo do feminino nesse homem. Um homem que fala de amor. Sua profissão era escrever lindas e sentimentais cartas de pais para filhos, amantes, avós ausentes etc. Esse homem, que acaba de se separar de seu grande amor, está devastado pela perda e afirma que a perdeu por não ter falado com ela sobre seus sentimentos.

Neste justo momento de sua vida, compra a inteligência artificial OS1, um lançamento com quem pode interagir. A inteligência é um outro, outra, na verdade, e a voz quente e sexy de Scarlett Johansson.

O feminino encarnado na voz cativa e aprisiona, já que representa um objeto de desejo inalcançável e nem por isto menos amado. Um encontro perfeito, suporte da fantasia, porém desencarnado. A voz não tem corpo. O amor é virtual, realiza a fantasia, mas não pode oferecer corpo à fantasia. Talvez, por isso, perfeito.

De fato, ele ama a si mesmo naquela voz que não é ninguém. E a voz encarna dilemas existenciais como a falta, a falta do corpo para satisfazer esse amor, anseio de um encontro impossível, no qual a ausência de um corpo, de um corpo a corpo, ao contrário de dissipar o sentimento, fortalece o encontro como perfeito.

Um homem ama falando de amor e jamais poderá contornar a diferença irredutível, existências paralelas em mundos que apenas se tocam virtualmente.

Amar é dar o que não se tem, disse Lacan. Uma ficção inventada sobre pedaços de real, sobre o encontro com o outro (pode ser uma voz, uma imagem, uma fantasia), encontro sempre faltoso e cercado de uma ânsia desesperada de ser eternizado por ser contingente e fugaz. E não seria assim o amor? Uma ficção?

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