Tereza Cruvinel - Todos os crimes
Nos 50 anos do golpe, é preciso dizer que houve aqui uma ditadura que censurou, torturou e matou
Estado de Minas: 30/03/2014
O que vale
celebrar, na passagem dos 50 anos do golpe civil-militar, é a superação
dos 21 anos de horror e trevas por 29 anos de democracia contínua, que
permitiram a realização, sem sobressaltos, de algumas das reformas que
assustaram, em 1964, o conservantismo brasileiro, disposto a qualquer
pacto para garantir seus privilégios. Entre elas, o voto dos
analfabetos, o acesso universal ao ensino e uma distribuição menos
desigual da renda. Mas a hora é de recordar para não esquecer, para que
não sejam esquecidos os que foram sacrificados e para que não vinguem as
narrativas que tentam relativizar os fatos. É preciso dizer que houve
aqui uma ditadura que violou o Estado de direito, cometeu crimes contra a
humanidade, censurou, torturou e matou.
É preciso dizer isso
especialmente aos mais de 90 milhões de brasileiros nascidos depois de
1985. Eles vêm sendo impregnados pelas narrativas relativizantes, como a
de que se não tivesse havido o golpe de direita, haveria o de esquerda.
Ou a de que Jango foi deposto porque teria dado uma “guinada
esquerdista” nos idos de março, por conta de reformas que buscavam
apenas tirar o país da Idade Média, de uma exclusão com resquícios de
escravidão. O golpe estava em marcha desde o veto à sua posse, em 1961,
com decidido apoio americano. Tornou-se também corrente dizer que as
violências do regime foram respostas à violência do outro lado. O
movimento inicial partiu dos golpistas, mesmo não tendo havida reação à
tomada do poder. Depuseram o presidente constitucionalmente eleito com a
ajuda de uma potência que apenas defendia seus interesses econômicos e
suas posições na Guerra Fria. E não foram somente os militares, mas
também a direita civil. Na madrugada de 2 de abril, a grande maioria do
Congresso apoiou a decisão de Moura Andrade, de declarar vaga a
Presidência e dar posse a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara.
Tancredo Neves o chamou de canalha. Rogê Ferreira lhe cuspiu na cara
três vezes. Gestos inúteis, estava tudo acabado. Jango voava para o Sul e
lá não teve condições de resistir. Dez dias depois, o primeiro general,
Castelo Branco, foi eleito com 361 votos e 72 abstenções. Do PSD,
apenas Tancredo não votou. O Congresso pagaria caro pelo golpismo. Foi
fechado, vilipendiado, teve muitos de seus membros cassados, seus
poderes manietados.
Nas primeiras horas do golpe incendiaram o
prédio da UNE, atiraram contra uma multidão na Cinelândia, depuseram
Miguel Arraes e arrastaram Gregorio Bezerra pelas ruas do Recife, com
uma corda no pescoço e os pés imersos em solução de bateria de carro até
ficarem em carne viva. Depois do golpe, a violência produziu o
inventário de crimes de cada governo militar, segundo o projeto Brasil:
Nunca Mais.
O relativismo tenta dizer ao futuro que “houve
excesso dos dois lados”. A conta das brutalidades já era enorme quando, a
partir de 1968, com todos os caminhos de resistência fechados, algumas
organizações de esquerda, quase todas costelas do PCB, que persistiu na
resistência legal e pacífica na política, partiram para a luta armada.
Nela, muitos perderam a vida. O direito internacional reconhece como
legítima a luta armada contra a opressão, mas isso nem vem ao caso.
Indiscutível é a desproporção e a brutalidade da repressão. Nem foi só
contra a luta armada que o regime mostrou sua falta de limites e sua
índole criminosa, e disso falam, emblematicamente, as mortes de Vladimir
Herzog e Rubens Paiva. Ou o trucidamento de boa parte da alta direção
do PCB.
Independentemente da organização em que militaram, é hora
de recordar os crimes mais bárbaros da ditadura, os assassinatos e as
torturas abomináveis cometidos em suas masmorras por agentes do Estado.
Eles não serão alcançados pela Justiça, por conta da Lei de Anistia
recíproca, mas precisam passar pelo menos pela execração pública, como
começa a ocorrer graças ao trabalho da Comissão da Verdade. Recordar
Stuart Angel Jones, que foi arrastado com a boca amarrada ao cano de
descarga de um jipe. Depois de sua agonia e morte, segundo relatos de
outro preso, Alex Polari, desapareceu para sempre. Mário Alves morreu
depois de espancado e empalado com um cassetete dentado. Chael Charles
Schreier morreu brutalmente torturado pelo tenente Lauria e o capitão
Aílton Guimarães.
A versão oficial entregue aos pais foi a de que
ele tivera um ataque cardíaco. Aurora Furtado reagiu à tentativa de
prisão e matou um policial. A vingança foi terrível. Torturada na
Invernada de Olaria, morreu quando lhe aplicaram a “coroa de Cristo”,
torniquete que lhe foi afundando lentamente o crânio. Eduardo Leite, o
Bacuri, soube que o matariam quando, já muito torturado, com a pele toda
queimada, deram-lhe para ler a notícia plantada num jornal, segundo a
qual ele fugira e desaparecera quando levado para reconhecer o corpo de
um companheiro. Desapareceu mesmo, mas de outro modo. Davi Capistrano,
do PCB, foi preso ao voltar de viagem e desapareceu para sempre.
É
preciso lembrar que os guerrilheiros do Araguaia foram todos mortos
como cães, mesmo depois de rendidos. O corpo de Oswaldão foi dependurado
a um helicóptero e exibido à população. O de Bergson Gurjão foi
pendurado numa árvore, chutado e cuspido pelos soldados. Lamarca e
Zequinha, famintos e debilitados, descansavam sob uma baraúna quando
foram metralhados. Carlos Marighela, líder da ALN, foi emboscado por
Fleury e varado de balas numa travessa paulistana. Seu sucessor, Joaquim
Camara Ferreira, tambem foi preso pelo mesmo delegado e levado a um
sítio, onde não resistiu à tortura. Os que não morreram puderam contar o
inferno por que passaram na tortura. Entre eles, Dilma Rousseff e Inês
Etienne Romeu — graças a quem soubemos que existiu a Casa da Morte, de
onde só ela saiu viva. Por isso e muito mais, não podemos falar só do
golpe, mas do que veio depois, com seu verdadeiro nome.
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