segunda-feira, 31 de março de 2014

Tu me ensinas a fazer renda?‏

A arte feita com a linha e a agulha se transformou em boa fonte de ganhos para mulheres do interior de Minas. Em mais de 80% dos municípios do estado há bordadeiras que dão vida à atividade


Marta Vieira
Estado de Minas: 31/03/2014


A renda turca de bicos está entre as especialidades das artesãs, que trabalham duro para atender a demanda (Fotos: Beto Novaes/EM/D.A Press)
A renda turca de bicos está entre as especialidades das artesãs, que trabalham duro para atender a demanda


Com todos os tropeços recentes da economia globalizada, as mulheres rendeiras e bordadeiras de Minas Gerais e do Brasil, que se firmaram na arte introduzida no país pelos portugueses e inspiraram a cultura e a música, podem dar boas aulas de educação financeira. A atividade, tão antiga e ainda repassada de mãe para filha, garante emprego e renda em centenas de municípios, resistindo à ameaça de morrer pelas mãos das gerações mais jovens, que não desgrudam da internet. A tradição, o amor pelo traçado de agulhas e linhas e a independência financeira conquistada tornaram conhecidos em todo o país grupos de profissionais da renda e do bordado das cidades de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte; Barra Longa, na Zona da Mata mineira, e Barroso, na Região Central de Minas.

Mestra das artesãs da renda turca de bicos, protegida como bem cultural de natureza imaterial em Sabará, a mineira Nilza Starling Almeida, de 87 anos, não vacila na cadência de agulha e linha e nem mesmo ao se recordar de algumas das mais de 200 alunas a quem ensinou nos últimos 30 anos na cidade histórica. “Continuo gostando de desafios. Vou fazer 88 anos e o dia em que não dou alguns pontos não passa. Isso é que está me segurando”, repete durante os encontros às segundas e quartas-feiras com as 15 mulheres do grupo Requifife – Rendas e Bordados Finos.

Artesã e líder administrativa do grupo, a filha Nayla Starling diz que não há como atender todo o volume de encomendas que chega, incluindo intermediários de clientes da França, Itália, Portugal e da Holanda. O portfólio é variado e rico em criatividade, oferecendo de toalhas de mão vendidas por R$ 30 a vestidos infantis comercializados a R$ 200. Uma única toalha de rosto pode consumir oito horas de trabalho e encantar do público que frequenta a Casa de Cultura de Sabará aos visitantes da Feira Nacional de Artesanato, realizada todo ano em BH, ou de outros eventos das quais o grupo participa. “Não tiramos férias do bordado. É como terapia, além de ajudar na vida financeira”, diz Nayla.

Os poucos dados mais recentes sobre a importância do artesanato dos bordados para o emprego e a renda dos brasileiros indicam que a atividade despontou, praticada em 74,2% dos municípios, em 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ela constitui traço da cultura nacional, alcançando 93% dos municípios de Sergipe, o campeão no desenvolvimento dessa arte, e 82,1% das cidades do Espírito Santo. Minas é o terceiro colocado. Há bordadeiras no pleno exercício da profissão em 695 dos 853 municípios, quer dizer, em 81,5% do total. A abrangência do trabalho supera com larga vantagem o artesanato em madeira, que estava presente em 33,7% do país em 2012.

DO CRIVO AO RICHELIEU Não foi sem esforço que Barra Longa passou a ser conhecida como capital brasileira da renda. Há quem garanta que a atividade é a segunda em geração de emprego e renda na cidade produtora de leite, com seus 6 mil habitantes. Seja na área rural, seja dentro do perímetro urbano, não há casa que se preze sem mulheres afiadas na confecção de peças em crivo, fuxico e renda richelieu, assim chamada em referência ao gosto pelos tecidos de linho de fino acabamento do lendário cardeal francês de Richelieu, conselheiro do rei Luiz XIII no século 17.

A Associação Barralonguense de Bordadeiras e Artesãos (Abba), criada em 2003, nasceu do empenho de mulheres como Maria Aparecida Lanna para fortalecer a produção e o comércio, que tem raízes na era da mineração de ouro na região. “Está no sangue. Vendemos pastel e organizamos bazar para conseguir os recursos e registrar a associação”, conta a artesã.

A organização trouxe benefícios, como o acesso aos cursos de empreendedorismo do Sebrae, facilitando também a participação em feiras e eventos. A compra coletiva de matérias-primas (linhas e tecidos) direto das fábricas barateou o custo de produção das peças. Com patrocínio da Samarco Mineração, em 2010 a associação adquiriu máquina de overloc para acabamento, que o grupo usa de forma coletiva. As bordadeiras atendem demanda de diversos municípios, a exemplo de Santo Antônio do Grama, Santa Margarida, Guiricema e Acaiaca.

Em Barroso, na Região Central de Minas, a Associação Ortópolis Barroso apoia o trabalho tradicional dos bordados. A artesã Eliana Ladinho Vale de Melo aderiu à legislação do microempreendedor em setembro do ano passado e já contrata os serviços de crochê de outras bordadeiras do município para dar conta de atender os pedidos. O marido, Geraldo dos Reis Melo, se associou no negócio, confeccionando as bases de madeira usadas em bandejas, porta-copos, caixas de bijuteria e maquiagem. O momento, agora, é pensar em como expandir a produção, conta Eliana. “Preciso de mais gente para trabalhar comigo. Há 50 anos faço do crochê um trabalho prazeroso e que complementa a renda da minha família”, afirma.


Em Sabará, Nilza Starling e sua filha, Nayla (em pé) ensinam as técnicas e o capricho a Nely, Geralda, Agda, Lira e Cacilda
Em Sabará, Nilza Starling e sua filha, Nayla (em pé) ensinam as técnicas e o capricho a Nely, Geralda, Agda, Lira e Cacilda


Horas e horas de dedicação


Professoras, costureiras, aposentadas de diversas áreas, donas de casa e empregadas domésticas trocaram a profissão pela arte da renda e do bordado ou conciliam as duas jornadas de trabalho, dedicando muitas vezes mais de 10 horas por dia à agulha e linha. Em Sabará, 20 anos de aprendizado separam a dona de casa Cacilda Geralda Ribeiro Muller, de 57 anos, hoje uma professora da técnica da renda turca de bico, e a aposentada Agda Jesus Viana, de 62, que se tornou aluna no grupo Requifife há um ano. Os objetivos são comuns, de aliar o prazer de tecer ou tricotar à complementação de rendimentos em casa.

“Quero me aperfeiçoar cada vez mais e ensino quem quiser aprender”, diz Cacilda, que recebe mais encomendas do que dá conta de atender. Agda já fazia peças em crochê quando surgiu o desejo de ampliar as possibilidades de reforçar a atividade como um negócio. “Quero ensinar minhas sobrinhas para que elas possam conciliar a renda com o trabalho delas e ajudar na independência financeira”, afirma. Ao grupo comandado por Nilza Starling se juntaram com o mesmo desejo Nely Avelino Magalhães, de 77, Geralda Agostinha Teixeira, de 64, e Lira Magalhães Soares, de 68.

“Com o bordado ganho meu dinheiro e pago contas”, diz Maria Aparecida Lana, que, além do trabalho artesanal, se empenha em conquistar mais apoio para a Associação Barralonguense de Bordadeiras e Artesãos, da qual é tesoureira, com a experiência vivida como professora e funcionária pública durante 14 anos. As peças requerem concentração e dedicação de no mínimo quatros horas no bordado de um guardanapo. As artesãs bordam toalhas de mesa, panos de prato, jogo americano de mesa e toalhas para lavabo, entre outras peças. Os preços variam de R$ 15 a
R$ 800. Não bastasse o desafio de competir com a produção chinesa, que inunda o mercado brasileiro, elas buscam patrocínio para o grupo poder, principalmente, continuar mostrando ao Brasil a beleza dos bordados feitos em Barra Longa. (MV)

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