Valor Econômico -
31/03/2014
Erich Schwartzel e Tamara Audi
Antes mesmo de a chuva cair, havia dúvidas. Será que "Noé", a nova
superprodução da Paramount Pictures, vai alienar os fiéis? Será que vai
atrair não religiosos em número suficiente para recuperar um custo de
US$ 125 milhões? E, mais importante, será que essa volta grandiosa de
Hollywood aos épicos bíblicos vai ser bem recebida por importantes
líderes religiosos?
Alguns desses líderes já estão dizendo que o
filme, repleto de efeitos especiais, reapresenta o livro do Gênesis como
uma parábola ambientalista moderna e contém detalhes que não estão nas
escrituras. Três países árabes estão se recusando a distribuir o filme:
muçulmanos consideram Noé um profeta e alguns condenam o uso de imagens
de figuras sagradas como sacrilégio.
"Noé" foi lançado sexta-feira nos Estados Unidos e estreia nesta quinta-feira no Brasil.
Estrelado
por Russell Crowe e outros dois atores já premiados com o Oscar, "Noé" é
uma iniciativa notável - e arriscada - para um estúdio hollywoodiano. É
a primeira superprodução bíblica em quase 50 anos e quebra a fórmula
dominante da última grande era desse tipo de filme, nos anos 50 e 60. Na
época, enredos e personagens permaneceram na maior parte fiéis à
narrativa original, inclusive nos clássicos de Charlton Heston, como "Os
Dez Mandamentos" e "A Maior História de Todos os Tempos".
A
abordagem da Paramount está sendo observada de perto pela indústria
cinematográfica como um teste para uma série de projetos bíblicos de
grande orçamento em desenvolvimento. Mas líderes religiosos, embora
animados com a ideia de ter o glamour de Hollywood a serviço de suas
causas, dizem que a Bíblia não é tão fácil de ser adaptada para o grande
público como, por exemplo, uma história em quadrinhos. O filme está
esquentando o debate em comunidades religiosas sobre os limites da
interpretação artística da Bíblia.
Nem todo mundo está
preocupado. Alguns cristãos e judeus influentes acharam "Noé" uma
interpretação consciente e divertida. Mas mesmo estes dizem ser difícil
prever como o filme será recebido por conservadores e literalistas da
Bíblia.
A Paramount, que pertence à Viacom Inc., afirma que
grande parte da reação inicial se baseia em versões anteriores do
roteiro que vazaram e não se parecem com o produto final. "Noé" já
estreou com sucesso no México, onde arrecadou US$ 1,4 milhão no primeiro
dia, e na Coreia.
"Tivemos que lidar com a questão: 'Será que
podemos confiar em Hollywood para fazer um filme que é ao mesmo tempo
divertido e consistente com temas bíblicos?'", diz Rob Moore,
vice-presidente do conselho de administração da Paramount. Dados
preliminares indicavam ontem uma bilheteria de US$ 44 milhões no fim de
semana de estreia nos EUA, acima dos US$ 40 milhões previstos pela
Paramount. O estúdio espera uma boa audiência nas próximas semanas
graças aos espectadores mais velhos, que costumam ver filmes depois da
estreia. No total, "Noé" já havia arrecadado US$ 95 milhões até ontem,
segundo o site Boxofficemojo.com.
É claro que, nas últimas
décadas, a indústria do cinema não abandonou o gênero dos filmes
"baseados na fé". Só que, ultimamente, o tema ficou relegado a produções
de baixo orçamento, atores pouco conhecidos e filmes muitas vezes
direcionados diretamente ao mercado de DVDs. Hollywood tem ficado longe
de filmes bíblicos de alto custo que podem gerar uma reação negativa
entre religiosos e indiferença entre o público secular. Mesmo "A Paixão
de Cristo", de Mel Gibson, que custou US$ 30 milhões e chocou Hollywood
ao arrecadar US$ 370 milhões nos EUA e US$ 600 milhões globalmente, em
2004, foi inicialmente dirigido a grupos religiosos, antes de se tornar
um fenômeno de mercado.
Uma reação positiva de Jerry A. Johnson,
líder do The National Religious Broadcasters, por exemplo, poderia dar
ao estúdio um endosso valioso da maior rede de comunicação cristã dos
EUA, que atinge dezenas de milhões de ouvintes e telespectadores. Após
assistir a "Noé", no mês passado, Johnson disse que se opõe à mensagem
ambiental do filme, mas aplaude a "seriedade" com que tratou o tema do
pecado e do juízo de Deus, além do alto valor da produção. Atendendo a
um pedido dele, a Paramount acrescentou um aviso aos espectadores de que
o filme é "inspirado na história de Noé" e que usou "licença poética".
O
sucesso ou o fracasso comercial de "Noé", que retrata um profeta do
Velho Testamento como um herói de ação, poderia profetizar o destino de
outros personagens bíblicos que devem receber uma roupagem hollywoodiana
nos próximos anos, incluindo Moisés, Maria, Caim e Abel.
"Maria",
a ser lançado pela Lions Gate Entertainment Corp. no ano que vem, narra
os primeiros anos da mãe de Jesus - um ângulo que, segundo um produtor,
ajuda a retratá-la como uma heroína para um mercado que tem gostado de
jovens personagens femininas como Katniss Everdeen, de "Jogos Vorazes".
Quanto
a "Noé", a Paramount afirma que abordou líderes critãos e de outras
religiões logo no início do processo para gerar uma compreensão maior
das intenções do diretor, Darren Aronofsky, e que acredita que algumas
das críticas vão terminar quando o público assistir à versão definitiva.
Ainda assim, as respostas negativas contrastam com o apoio da
comunidade cristã, no início deste ano, a "O Filho de Deus", uma
biografia ostensivamente religiosa de Jesus Cristo que recuperou seu
orçamento nominal no fim de semana de estreia nos EUA.
A
inspiração para "Noé" veio de Aronofsky, conhecido por dramas mórbidos e
surreais. Seu sucesso de bilheteria "Cisne Negro", sobre uma bailarina
obsessiva que perde o contato com a realidade, foi indicado ao Oscar de
melhor filme e seu sucesso deu ao diretor de 45 anos cacife necessário
para fazer "Noé", uma história que o cativa desde que ele escreveu um
poema sobre ela na escola.
"Desde criança, achei [Noé] uma
história assustadora. [Receava] não ser bom o suficiente para entrar no
barco e o que isso significaria", diz Aronofsky, que atribui a maior
parte da reação negativa antecipada à demora de Hollywood para voltar a
produzir épicos bíblicos.
A história de Noé no Gênesis tem só
quatro capítulos e o descreve como um "homem justo" de 600 anos, sem
mais detalhes. Para completar a descrição, Aronofsky e Ari Handel, que o
ajudou a escrever o roteiro, se debruçaram em textos judaicos antigos,
tratados teológicos e manuscritos sobre o Mar Morto. A bibliografia do
roteiro tem cinco páginas.
O Noé de Aronofsky é um naturalista
transtornado que, machado em punho, luta contra exércitos malignos com a
ajuda de gigantes de pedra gerados por computador. As cenas são
semelhantes a outra série da Paramount, "Transformers". O filme também
retrata um drama familiar, com a atriz Jennifer Connelly fazendo o papel
da sofrida esposa de Noé e o ator Logan Lerman, de Ham, o filho do
meio, que foi proibido de levar sua esposa para a arca.
Contribuindo
para a crítica de que o filme tem uma agenda, Deus manifesta sua ira
com um dilúvio, não só para punir o mal da humanidade em geral, mas
também porque uma "civilização industrial" tem sobrecarregado os
recursos naturais da Terra. Noé é convocado para salvar os animais e sua
família, enquanto o resto da humanidade se afoga.
"Não sei como
não há uma conexão ecológica [na história]", diz Aronofsky. "A palavra
'ambientalismo' foi politizada por algumas pessoas que fizeram dela uma
questão fora do que está na Bíblia." Por sua vez, alguns cristãos dizem
que as escrituras apoiam o tema ambiental e outros que Deus deu ao homem
domínio sobre a criação.
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