Zero Hora - 15/06/2014
Muitas situações provocam estranhamento, e uma das mais inquietantes é
entrar no apartamento de um vizinho de prédio. Está ali a mesma sala, do
mesmo tamanho que a sua, com a mesma orientação solar, a mesma
disposição das paredes, a mesma cozinha, os mesmos quartos e banheiros
mas nada, nada é o mesmo.
A parede que na sua casa é cor de marfim, na do vizinho está pintada
de vermelho, o que muda a atmosfera do ambiente, faz com que pareça
menor. Você, que adora plantas e coleciona bugigangas trazidas de
viagens, entra cautelosa naquele apartamento gêmeo ao seu, porém
totalmente despojado de humanidade, mais parece um show room.
Onde você tem um aparador lotado de porta-retratos, o vizinho
colocou um espelho do teto ao chão. Você deixa um sofá branco e
confortável virado em direção à sacada, enquanto seu vizinho têm duas
chaise longue de aço cromado e couro preto que ficam paralelas uma a
outra, voltadas para uma parede onde ele possui uma televisão do tamanho
de um aquário do Sea World.
Ao entrar na cozinha dele, imagina que está dentro de uma nave
espacial, tudo é cinza chumbo e imaculadamente limpo, enquanto sua
cozinha tem uma fruteira de papel machê trazida da Bahia e armários de
madeira.
O lavabo dele é revestido com um papel de parede austero e elegante,
o seu se manteve como a construtora entregou, com azulejos sem graça, e
você nem trocou a torneira original, simplesinha – a dele deve ter sido
transplantada de algum castelo francês, é um colosso. Se você tivesse
um lavabo igual, é lá que receberia as visitas. Aí você lembra que tem
um igual, só que o seu parece um banheiro de rodoviária.
Apartamento de vizinho causa desconforto porque inevitavelmente será
mais bem cuidado ou mais desleixado que o seu, mais escuro ou mais
claro, mais atraente ou mais insosso. A disposição dos móveis parece
incorreta, tudo sugere uma grande transgressão, e você não se sente
acolhido, tem vontade de sair correndo daquele lugar que foi concebido
de um jeito estranho a fim de confrontar você. É isso. O apartamento do
vizinho lembra que há outras formas de viver, enquanto você julgava que
só havia uma: a sua.
Cada um de nós concebe a vida de uma determinada forma, decora a seu
modo os dias e noites, colore suas paixões com suavidade ou desespero,
dá um revestimento aos seus traumas ou os deixa a nu, expõe suas
esquisitices ou as joga para baixo do tapete.
Cada um de nós recebe o mesmo espaço para existir e o arranja,
inventa, traduz, transforma e recria de acordo com uma identidade que
será sempre única, particular. Quando você tiver um ataque de petulância
e achar que só o seu jeito de viver é que é certo, dê um pulo no
apartamento do vizinho. E assombre-se com a quantidade de novos mundos
que existem nas portas ao lado.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA pouco tempo reencontrei uma ex namorada evangélica, que tínhamos uma grande afinidade, exceto no quesito religioso. Gosto muito dela, mas parece que essa diferença entre nossos mundo a afeta demais. Lendo esse texto relembrei meu caso.
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