Mostra de fotografias de Pedro David, em cartaz no Museu Mineiro, equilibra a beleza das obras com uma reflexão crítica, atenta e emocionada sobre o sentido das imagens no mundo atual
Gracie Santos
Estado de Minas: 09/08/2014
Instalação Última morada, integrante da mostra Fase catarse: a peça delicada de roupa como tela para projeção de imagens |
Certas imagens ficam para sempre. Não apenas pelo impacto que possam trazer ou pela beleza que porventura se apodere delas e nos envolva por inteiro, mas pela capacidade que têm de contar uma história. E, depois de tudo isso, transportar o admirador para dentro de si mesmo, jogá-lo em seu próprio mundo, remexendo seus guardados mais profundos. É o que se vê na exposição Fase catarse, que o fotógrafo mineiro Pedro David, de 36 anos, mostra até dia 31 no Museu Mineiro, em Belo Horizonte. A mostra reúne três séries (Aluga-se, Coisas caem do céu e Última morada), momentos de introspeção, autoanálise e superação vividos pelo artista diante de acontecimentos difíceis. A trilogia começa pela busca de um lugar para morar, esbarra em problemas com vizinhos e se encerra com a morte da mãe de Pedro.
Nas duas primeiras sequências de Fase catarse, o fotógrafo encontra soluções surpreendentes para problemas que se tornam aparentemente pequenos, principalmente diante da perda do ente querido que fecha a trilogia. Ele transforma, por exemplo, a tarefa tediosa de procurar apartamento para alugar em imagens que utilizam as janelas como câmera fotográfica, que emitem, sem foco, raios de luz do dia que corre alheio às pesquisas no mercado de imóveis. Pelas lentes de Pedro David, paredes de apês vazios são quase pinturas, de textura e coloridos especiais. Ele chega a registrar o azul do céu em uma das mais belas imagens.
Coisas caem do céu é reflexo do estado de espírito do fotógrafo, alguém que, de bem com o mundo, a vida e humor ácido, não se deixa exasperar pela falta de educação dos vizinhos que atiram lixo na sua até então “adorável” área externa de apartamento térreo. Pedro recolhe e coleciona os objetos que aterrissam em sua casa e que, sob seu olhar macro, tornam-se esculturas curiosas. Caso de um pedaço de sabão que mais se parece pedra preciosa e um papel de bombom amassado com brilho e forma interessantes.
Mas é em Última morada que Pedro David supera todas as expectativas. A instalação, montada para revelar preciosas lembranças de sua mãe (com quem dividia a moradia), é simples e profundamente verdadeira. Integram o espaço (que bem poderia ser uma salinha de visitas) o sofá de um acento (onde o admirador vai se aconchegar para assistir à obra em vagaroso slide show); um tapete de pele de vaca (presente que ela ganhou de um amigo); um vaso com a planta morta, que nunca mais foi regada; um pequeno porta-retrato vazio, pendurado na parede; e prateleiras com delicados objetos de vidro, heranças que escolheu guardar e mostrar.
Anágua De rara delicadeza é a peça criada para absorver as imagens que se alternam entre um cobertor de oncinha, um livro cheio de marcações, plantas e variados objetos de sua mãe. Pedro David transformou parte de uma anágua (em cetim branco com barrado de renda) em tela de projeção. A peça está pendurada em um cabide, em frente ao sofá. Ao fundo, o projetor instalado em um totem de madeira exibe as fotografias, enquanto ao fundo, bem ao fundo, ouve-se a leve respiração ofegante de quem se despedia da vida.
Transformar dor em poesia é lugar-comum. O que Pedro David fez de seu luto foi criar uma possibilidade de encontro real e verdadeiro com quem se ama e não se tem mais. Ainda que o trabalho possa levar a acreditar que filho e mãe vieram uma relação especial, o que está em questão é a capacidade de transformação do simples em potente material, que não apenas emociona, mas permite ao espectador fazer sua própria viagem, viver seus próprios lutos.
Fase catarse é a catarse do autor capaz de levar o espectador à sua própria catarse. Ao final da série de 46 imagens, que invocam demorada apreciação, fica a certeza de que a arte é realmente transformadora. Fica para sempre e traz reflexões.
Antes de nascer A fotografia vive momento ímpar, que começou a se desenhar há tempos. Já há muito um exército de fotógrafos “autodidatas” invade o planeta, poderosos autores de instantâneos que caminham pela rede. Recorrentes são cenas de coberturas de shows em que artista e palco desaparecem para dar lugar a milhares de minúsculas telinhas, que registram para as redes sociais o tão importante: “estou aqui agora”. (E nada mais interessa?) Selfies e mais selfies desafiam a capacidade de discernir pose e verdade. Até o ponto de um ultrassom de altíssima definição, colorido, distribuído em e-mail familiar, fazer alguns acreditarem que o bebê havia nascido de sete meses. Antes de nascer, ele foi fotografado e, claro, postado. No futuro, poderá dizer que veio ao mundo (redes sociais) antes de nascer.
E o que será dos profissionais da fotografia diante dessa vulgarização da imagem?, perguntam-se muitos temendo o pior, a saturação que engolirá o bom profissional. As respostas são muitas e estão trafegando no espaço para quem quiser vê-las por aí. Por exemplo, para além do registro “amador” de fatos importantes postados na hora agá, no espírito do “publiquei primeiro”, haverá sempre imagens que dirão mais que muitos textos, obras de qualidade realizadas por fotojornalistas profissionais. Para além dos pinguins gelados de Sebastião Salgado, traços de óbvia perfeição (nada contra, nem a favor), haverá Pedros Davids dispostos a encarar a vida, buscar caminhos diferenciados e emocionar com franqueza e sensibilidade.
Foto da série Coisas que caem do céu: força da ironia |
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