sábado, 9 de agosto de 2014

Poeta da negritude
 
Há 10 anos morria o escritor mineiro Adão Ventura, autor de A cor da pele, um marco na literatura brasileira


Carlos Herculano Lopes
Estado de  Minas: 09/08/2014


Escritor e professor de literatura terá o clássico A cor da pele e outros poemas negros relançado em formato digital (Arquivo EM. Brasil - 10/12/71)
Escritor e professor de literatura terá o clássico A cor da pele e outros poemas negros relançado em formato digital

Um dos maiores poetas brasileiros do século 20. Esta é a avaliação do escritor e editor Tião Nunes sobre Adão Ventura, mineiro nascido em 1939, em Santo Antônio do Itambé, autor do já clássico A cor da pele, importante conjunto de poemas sobre o tema da negritude e do racismo. Ao lado do romancista Jaime Prado Gouvêa e de Beth Guimarães, Tião vem cuidando do legado literário do escritor, que morreu há 10 anos de câncer, em Belo Horizonte, aos 65 anos.

De acordo com Nunes, que em 2006, dois anos depois da morte do poeta, lançou a antologia Costura de nuvens, pela Editora Dubolsinho – no volume estão reunidos alguns dos melhores poemas de Adão Ventura –, a ideia que deve se concretizar até o fim do ano é a publicação de toda a obra do escritor. “O primeiro passo será o relançamento de A cor da pele e outros poemas negros em formato digital”, adianta o editor.

Num ensaio publicado por ocasião do lançamento do seu livro mais conhecido, em 1980, em edição independente, o professor de literatura e crítico Silviano Santiago escreveu: “A originalidade da poesia de Adão Ventura advém do sentimento da cor da pele. A cor da pele: algo de pessoal e intransferível, e ao mesmo tempo algo de coletivo e histórico. O homem se descobre negro na tessitura da pele, e nesta vê as marcas da escravidão e do degredo, e sente os sofrimentos e a Mãe-África. Adão Ventura filia-se ao que se poderia chamar – insistindo ao máximo no paradoxo – a tradição ocidental da poesia negra, tradição esta elevada à condição soberana por Cruz e Souza em pleno movimento simbolista”.

Neto de escravos trabalhadores em fazendas e minas, Adão Ventura Ferreira Reis nasceu em Santo Antônio do Itambé, no Vale do Jequitinhonha, em 5 de julho de 1939. Naquela cidade, que marcaria para sempre sua vida e poesia, ele viveu até o início da juventude, quando então, sonhando com dias melhores – impossíveis de serem conseguidos por lá –, mudou-se com a cara e a coragem para a cidade, vizinha do Serro.

Pouco tempo depois, ainda na sua busca pessoal, veio para Belo Horizonte, onde se formou em direito pela UFMG, na turma de 1971. Adão, em seguida, traria sua família para a capital, para a qual comprou uma casa na Região de Venda Nova. Seus irmãos e sobrinhos ainda vivem por lá. Foi em BH que a sua mãe, dona Sebastiana, aprendeu a escrever o próprio nome. No poema “Alfabetização”, que integra Costura de nuvens, Ventura registrou o fato: “Papai levava tempo para redigir uma carta./ Já mamãe, Sebastiana de José Teodoro/ teve a emoção de assinar seu nome completo/ já quase aos setenta anos”.

SUPLEMENTO E SURREALISMO
Ligado à literatura desde a adolescência, quando lia o que lhe caía nas mãos, como declarou em entrevista a Jeferson de Andrade, em Belo Horizonte, Adão Ventura juntou-se a um grupo de jovens escritores que gravitava em torno do Suplemento Literário do Minas Gerais, cuja sede ficava no prédio da Imprensa Oficial, na Avenida Augusto de Lima, no Centro da cidade.

Criado por Murilo Rubião em 1966, em plena ditadura militar, o suplemento foi uma das mais importantes publicações brasileiras da época, editando textos de alto nível nas áreas de literatura, cinema, teatro e artes plásticas. Da chamada “geração suplemento”, fizeram parte Jaime Prado Gouvea, Luiz Vilela, Duílio Gomes, Luciene Samôr, Angelo Oswaldo, Humberto Werneck, Márcio Sampaio, Sérgio Sant’Anna, Sérgio Tross, Tião Nunes e tantos mais.

No Suplemento Literário, do qual chegou a ser revisor por um tempo, Adão Ventura publicou os primeiros poemas e foi também a partir dali, incentivado pelos amigos, que lançou por conta própria seu primeiro livro de prosa poética, com o extenso nome de Como abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Texto surrealista, bem em voga na época, mas no qual já dava para se perceber o que viria pela frente. Seis anos depois, sairia o segundo livro, As musculaturas do Arco do Triunfo.


Consciência racial e política


Em 1973, depois de ter sido apresentado pelo poeta e amigo Affonso Ávila ao professor de literatura Heitor Martins, este o convidou para lecionar literatura brasileira na Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, onde era um dos coordenadores do Departamento de Língua Portuguesa. O convite dava ainda a Adão Ventura a oportunidade de participar do Congresso de Escritores Internacionais, que então era patrocinado pela Universidade de Iowa.

Essas duas experiências, como ele próprio reconheceria mais tarde, seriam fundamentais não só para a sua carreira de escritor, como para seu amadurecimento poético e humano. “Agarrei a chance com as duas mãos e procurei tirar o máximo proveito”, disse Adão Ventura à época.

Quando retornou dos Estados Unidos, onde conheceu e teve contato direto com a luta pelos direitos civis dos negros, movimento que mobilizava o país, o poeta mineiro, cuja criação literária até então estava voltada para textos surrealistas, deu uma guinada definitiva na sua escrita. Começou a se assumir como afrodescendente e a mostrar esse sentimento na poesia. Escreveu então A cor da pele. Num dos poemas mais emblemáticos, “Para um negro”, compôs: “Para um negro/ a cor da pele/ é uma sombra/ muitas vezes mais forte/ que um soco./ Para um negro/ a cor da pele/ é uma faca/ que atinge/muito mais em cheio o coração”.

Ainda de acordo com Silviano Santiago, no ensaio escrito por ocasião do lançamento do livro, a cor da pele é marca indelével que não se apaga com os bons sentimentos humanitários ou patrióticos, nem com a política paternalista dos governantes ou populistas de oposição. “Por isso é que o elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo para Adão. É algo de presente e premente”, escreveu.

ANTOLOGIA Um dos poemas do livro, Negro forro, seria ainda selecionado pelo professor Ítalo Moriconi para fazer parte da antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século, lançado em 2001 pela Editora Objetiva. “Minha carta de alforria/ não me deu fazendas/ nem dinheiro no banco/ nem bigodes retorcidos./ Minha carta de alforria/ costurou meus passos/ aos corredores da noite/ de minha pele”.

Adão Ventura, que foi ainda presidente da Fundação Palmares, em Brasília. Seus escritos, objetos, biblioteca e originais foram doados pela família ao Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG, logo depois de sua morte, onde está aberto à consulta pública. Adão Ventura publicou ainda os livros Jequitinhonha, em 1980; o infantojuvenil Pó-de-mico, macaco de circo, em 1985; Texturafro, em 1992; e Litanias de cão, em 2000.


LINHA DO TEMPO

1939 – Adão, filho de Sebastiana Ventura e de José Ferreira dos Reis, nasce em Santo Antônio do Itambé, no Vale do Jequitinhonha. Na época, a cidade era distrito do Serro.

1966 – Publica os seus primeiros poemas no Suplemento Literário do Minas Gerais, que havia sido criado pelo escritor Murilo Rubião, em torno do qual girava uma geração de novos autores.

1973 – Muda-se para os Estados Unidos, onde dá aulas de literatura brasileira na Universidade do Novo México. A experiência foi fundamental para sua carreira como escritor.

1980 – Publica A cor da pele. Aclamado pelo público e pela crítica, hoje o livro é considerado um dos clássicos da poesia brasileira contemporânea.

2004 – Em 12 de junho, depois de lutar durante meses contra um câncer, Adão Ventura morre em Belo Horizonte, cidade que havia adotado como sua.

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