Paloma Oliveto
Estado de Minas: 03/09/2014
No início do século 20, a lobotomia foi apresentada como elixir das doenças da mente e da alma. Depressão, ansiedade, agressividade, esquizofrenia, tendência suicida — segundo psiquiatras, todos esses problemas podiam ser resolvidos com a técnica criada pelo português Egas Moniz. Até os anos 1950, a técnica se concentrava na porção dianteira do cérebro, que, então, era uma massa quase desconhecida. Os cientistas da época garantiam que o córtex pré-frontal (CPF) não tinha muita importância, conforme demonstravam experimentos com animais que tiveram pedaços dessa região retirados.
Após milhares de intervenções realizadas em todo o mundo, porém, a verdade começou a aparecer. Longe de restituir a saúde mental da maioria dos pacientes, a lobotomia, na verdade, arrancava parte da vida deles. Muitos se tornaram apáticos, incapazes de realizar tarefas cotidianas e tiveram algumas funções do corpo prejudicadas. Ficava claro que o córtex pré-frontal não era uma parte pouco importante do cérebro.
Na verdade, ainda no século 19, um neuropsicólogo britânico já tinha encontrado pistas disso. Em 1876, David Ferrier removeu largas porções dessa área de macacos. “Os animais retêm seu apetite e instinto e são capazes de exibir sentimentos emotivos. As faculdades sensoriais, visão, audição, tato, paladar e olfato continuam inalteradas”, escreveu no artigo científico “As funções do cérebro”. Contudo, ele pôde perceber outras mudanças no comportamento e na personalidade das cobaias. “Em vez de, como antes, estarem ativamente interessadas no que acontecia ao seu redor, e curiosamente bisbilhotando tudo que aparecia em seu campo de observação, elas se mantinham apáticas, entediadas ou apenas dormindo”, notou Ferrier.
Além disso, outros médicos começaram a reportar casos de pacientes que chegavam aos consultórios com lesões no CPF e, apesar de manter intactas as funções básicas, tinham mudanças surpreendentes de comportamento, algo que, hoje, está bem documentado na literatura médica. “Pacientes com lesões no córtex pré-frontal não perdem seus sentidos e, geralmente, mantêm preservadas as habilidades linguísticas. Mas eles manifestam anomalias sociais ou dificuldades com o planejamento de alto nível nas situações cotidianas”, observa Sara Szczepanski, neurologista da Universidade da Califórnia, em Berkeley. É de autoria da cientista uma análise de estudos, antigos e recentes, que tentam decifrar o CPF a partir da observação de lesões na região, publicada na edição mais recente da revista Neuron.
Danos comuns Szczepanski lembra que danos nos lobos pré-frontais são extremamente comuns. Por causa da posição, a região é a mais suscetível a ser lesionada, seja por golpes, quedas ou batidas. Também é onde mais comumente surgem tumores e ocorrem os derrames vasculares que caracterizam o AVC. Mas, justamente pelos sintomas não serem tão flagrantes, pode ocorrer de as lesões acabarem sendo ignoradas ou subestimadas. “Mas essa é uma região crítica para o comportamento e para as habilidades complexas humanas”, alerta a neurologista. Os pacientes com danos nessa região apresentam mais dificuldade para aprender, executar múltiplas tarefas, controlar suas emoções e se socializar. “Essa é uma parte do cérebro ainda cercada de muito mistério. Precisamos entendê-la melhor para encontrar técnicas mais eficientes de reabilitação”, afirma a pesquisadora.
Na compilação de artigos científicos e estudos de caso organizados pela neurologista, cientistas descrevem como lesões cerebrais prejudicaram diferentes aspectos cognitivos e comportamentais dos pacientes, dependendo da área atingida. O córtex pré-frontal é, anatomicamente, dividido em sub-regiões, sendo que cada uma delas, aparentemente, desempenha funções diversas, embora todas estejam, de certa forma, relacionadas às emoções e à tomada de decisões.
Um dos casos citados no artigo é o do paciente Phineas Gage, que, em 1848, sobreviveu a uma lesão severa no cérebro quando uma barra de metal atravessou seu crânio. “O caso do senhor Gage é um dos mais famosos e fascinantes da neurociência”, comenta John van Horn, pesquisador da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que, mais de um século e meio depois, estudou esse fato. Trabalhador de uma estrada de ferro, ele dinamitava um rochedo para a instalação dos trilhos quando foi atingido após uma explosão. Homem tranquilo e amável, transformou-se no oposto disso. Aos 25 anos, Gage virou uma pessoa irritável, furiosa, irreverente e mal-humorada. Não à toa, ao longo dos anos, vários cientistas o estudaram. Depois da morte, o cérebro do paciente foi preservado e analisado com exames de imagem.
Jack van Horn foi um dos neurologistas que avaliou os resultados das tomografias. De acordo com ele, a barra de ferro danificou mais de 10% de massa branca da região orbitofrontal de Phineas Gage. Lesões nessa área estão associadas à perda do controle inibitório e emocional e à falta de habilidade no domínio social. “A lesão de Gage interrompeu importantes conexões entre essa parte do cérebro e o restante do órgão”, conta Van Horn. “Isso teve um grande impacto em sua mudança de personalidade. O caso do senhor Gage ainda hoje é extremamente valioso para o estudo de pacientes com danos cerebrais”, observa.
Recuperação Se, na época de Gage, pouco se podia fazer por ele, os artigos revistos por Sara Szczepanski indicam que, embora as lesões no córtex pré-frontal sejam capazes de provocar alterações comportamentais profundas, essa região cerebral também pode ser alvo de reabilitação. “Porções intactas do CPF são capazes de se reorganizar depois de uma doença ou um dano, provavelmente porque essas partes do córtex são suficientemente flexíveis. Com isso, é possível alcançar ao menos uma recuperação parcial das funções perdidas, com várias técnicas de intervenção”, observa. De acordo com ela, as mais bem-sucedidas são as terapias cognitivas compensatórias — tratamentos farmacológicos, por enquanto, não têm surtido efeito no sentido de recuperar as funções do córtex pré-frontal.
Para a pesquisadora, ainda há muitas questões a serem respondidas a respeito dessa importante região cerebral. “Com o aprimoramento das técnicas de imagem, acredito que vamos dar um salto no estudo do CPF”, diz. Szczepanski acredita que uma importante linha de investigação é a interação dos circuitos do córtex pré-frontal com o restante do cérebro e como os danos nessa área podem prejudicar funções que, em princípio, não estão diretamente relacionados com ela.
Saiba mais
O hipocampo e a memória
Poucos pacientes contribuíram tanto para a neurociência quanto o americano Henry Gustave Molaison. Durante 55 anos, ele se olhou no espelho sem saber o que tinha feito no dia anterior. Um homem inteligente, descrito como amoroso, engraçado e generoso, Molaison se lembrava do nome da cidade da Louisiana, onde seu pai nasceu e reconhecia artistas e celebridades dos anos 1940. Mas, todos os dias, ao acordar, não recordava suas ações poucas horas antes.
Epilético, Molaison passou por uma cirurgia experimental em 1953 que removeu uma importante região de seu cérebro. Até então, a memória era um conceito subjetivo e ninguém desconfiava que existissem diferentes tipos: uma de curto prazo, aquela que permite decorar um número de telefone e discá-lo pouco tempo depois, para então esquecê-lo, e outra de longo prazo, pela qual fatos, nomes e habilidades adquiridas são estocados. Os cientistas muito menos poderiam supor que a memória de longo prazo tem subdivisões.
Na cirurgia, foram removidos os dois lados do hipocampo, uma estrutura do cérebro em formato de cavalo-marinho. A retirada acabou com as convulsões, mas também transformou Molaison em um homem sem passado. Nos mais de 100 testes científicos dos quais ele participou, ficou evidente que ele se esquecia completamente das tarefas executadas ao longo do dia. O americano só conseguia se lembrar dos fatos ocorridos até três anos da operação. Isso levou os neurocientistas a compreenderem que o hipocampo é o centro da memória de curto prazo, que converte acontecimentos em recordações.
A partir da experiência com o paciente, a neurociência passou por uma revolução. Molaison foi estudado por muito tempo e até hoje desenvolvem-se novas teorias a partir das observações registradas sobre seu desempenho em testes cognitivos. Ele foi o mais famoso paciente neurológico da história. (PO)
Nenhum comentário:
Postar um comentário