Dia de Combate à Epilepsia chama atenção
para um mal que atinge até 3% da humanidade, mas pode ser prevenido em
alguns casos. Se bem diagnosticado e tratado, não é incapacitante
Alfredo Durães
Estado de Minas: 09/09/2014
Com 3 anos de
idade, M.J*, hoje com 50, teve a primeira crise. Tremia e se debatia
sem que a família, que morava na Zona da Mata mineira, pudesse atinar
com o que ocorria. Começariam então viagens mensais até o Rio de Janeiro
para várias consultas até que se fechasse o diagnóstico – epilepsia – e
se definisse o tratamento. A única coisa que fazia o pai de M.J.,
quando ocorriam as crises, era enfiar o dedo na boca do filho para que
ele não mordesse a própria língua. De lá para cá, medicado, M.J. teve
algumas crises esporádicas e, há bastante tempo, não era acometido. Até
que, no mês passado, enquanto via televisão e tomava seu café da manhã,
caiu da cadeira e começou a se debater. O pai, mais uma vez, foi o
espectador da agonia do filho, agora cinquentenário. Quando a crise
passou, M.J não se lembrava de nada. Levado ao médico, ele teve a
medicação alterada e está bem.
M.J. faz parte da estatística de
1% a 3%, pelo menos 22 milhões de pessoas no mundo, acometidas pelo mal
que é lembrado hoje, Dia Nacional e Latino-Americano de Combate à
Epilepsia, principalmente pela desinformação e preconceito. Segundo a
Liga Brasileira de Epilepsia (LBE), trata-se de um distúrbio neurológico
crônico, uma alteração temporária e reversível do funcionamento do
cérebro, que se expressa por crises recorrentes. O diagnóstico de
epilepsia requer a ocorrência de pelo menos uma crise. De acordo com a
LBE, mesmo que até 3% da população tenha o mal, cerca de 5% da população
mundial apresentou alguma vez uma crise de epilepsia.
Por se
tratar de um distúrbio neurológico crônico, é possível a prevenção? Para
a neurofisiologista clínica Andréa Julião de Oliveira, de 39 anos,
membro da Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica (SBNC), que
trabalha em Belo Horizonte, não é de se estranhar quando se fala em
prevenção da epilepsia. “Na verdade, grande parte da doença pode ser
prevenida, como é feito com intensidade em países mais desenvolvidos.
Por exemplo, nos cuidados com o parto ou no tratamento de infecções do
sistema nervoso. Isso, além de uma política de saneamento básico, já que
a doença pode, também, ser causada pelo ovo da solitária no cérebro, a
neurocisticercose, proveniente de alimentos infectados por fezes”,
explicou.
Segundo a médica, “podem também ser prevenidas as
consequências de uma crise para amenizar os riscos para a pessoa ou
terceiros, como foi o caso do motorista do ônibus Move, que perdeu a
direção e provocou um acidente na semana passada em Belo Horizonte.
Ficou comprovado que ele teve uma convulsão”. Andréa afirma que as
políticas públicas de prevenção e tratamento da doença no Brasil ainda
são bem incipientes. “Essa política existe, mas pode ser melhorada. Por
exemplo, atualmente, o paciente tem à disposição a oferta de
medicamentos gratuitos pela rede pública, porém há muitas falhas na
distribuição.”
A rede pública oferece ainda o tratamento
cirúrgico, se for o caso. “Porém, os leitos do SUS são insuficientes
para a demanda. E também há uma falta de conhecimento por grande parte
dos pacientes sobre essa opção da cirurgia e um certo preconceito de
alguns médicos em relação ao procedimento”, diz Andréa. Ela afirma ainda
que 70% dos casos da doença são de fácil controle, bastando tomar o
medicamento correto, depois de um diagnóstico acertado, já que são
muitos os tipos de epilepsia. (leia quadro).
Andréa avalia que as
condições de tratamento avançaram bastante nos últimos 30 anos. “Durante
as décadas de 1980 e 1990, houve um aumento exponencial de medicamentos
para a doença, com um grande avanço das técnicas e equipamentos para
tratamento, diagnóstico e prevenção. Porém, Minas Gerais está atrás de
muitos estados brasileiros nessa área, mesmo que nesse sentido a
situação em nosso estado tenha melhorado nos últimos anos”, analisou.
Afirmando
que qualquer pessoa, de qualquer origem ou idade, pode em algum dia da
vida manifestar sintomas da doença (menores ou mais acentuados), ela
lembra a importância da prevenção e mais: “É preciso também um
esclarecimento no sentido de que se saiba que epilepsia não é doença
mental, não provoca alteração na inteligência e não compromete a
competência profissional da pessoa”.
Número subestimado Para
o neurologista Ricardo Amorim Leite, de Recife (PE) e também secretário
nacional da LBE, o número de 1 a 3% da humanidade sofrendo de epilepsia
é, “com certeza, subestimado”. De acordo com o neurologista – que no
mês que vem parte para um curso de doutorado de três anos na França –,
muitos casos entre as populações mais pobres da Terra podem nem ser
registrados oficialmente.
Amorim diz que a função da LBE é trazer o
assunto epilepsia para um conhecimento maior da população, de modo a
diminuir os custos financeiros e sociais para o paciente, a família e a
sociedade. Ele alerta que o Brasil possui poucos centros especializados
no tratamento, bem como número insuficiente de profissionais para lidar
de forma positiva com a doença.
E conta que a LBE promoverá
cursos gratuitos para os profissionais médicos de várias partes do país
que tenham interesse maior no assunto. Os cursos começam no próximo mês e
devem se estender até o fim de 2015, na base de um por mês. Mais
informações podem ser obtidas no site www.epilepsia.org.br.
*Foram registradas só as iniciais para preservar a identidade do personagem
Olhar atento
A
Liga Brasileira de Epilepsia (LBE), associação civil e sem fins
lucrativos, congrega médicos e outros profissionais dedicados à saúde
das pessoas com epilepsia. Promove recursos para o ensino e pesquisa
destinados à prevenção, diagnóstico e tratamento da doença.
TIPOS DE CRISE
»
A tônico-clônica ou convulsão acomete metade dos pacientes. Atinge todo
o cérebro. A pessoa fica rígida, cai no chão e se debate. As
extremidades do corpo tremem.
» Os outros 50% variam. Algumas
pessoas sentem o braço formigar, isso seguido de pequenos abalos, o que
acontece por causa da região afetada do cérebro. Outras pessoas sentem
cheiros estranhos por alguns segundos e saem do ar. Esta é a crise
parcial complexa, com turvação da consciência.
» Nas crianças, a
epilepia se apresenta na forma de crises de ausência, como se ligasse e
desligasse. Ela pode ter várias crises por dia – às vezes mais de 100 – e
em poucos minutos de duração.
O QUE FAZER
»
Muita gente não sabe como proceder diante de um quadro de convulsão. Se
a crise durar menos de cinco minutos e você tiver conhecimento que a
pessoa é epiléptica, não é necessário chamar um médico. Acomode-a,
afrouxe suas roupas (gravatas, botões apertados), coloque um travesseiro
sob sua cabeça, procure deixá-la um pouco de lado, e espere o episódio
passar. Mulheres grávidas e diabéticos merecem maiores cuidados. Depois
da crise, lembre-se que a pessoa pode ficar confusa: acalme-a ou leve-a
para casa.
» Se a crise durar mais tempo, é melhor chamar atendimento de urgência, pois poderá ser necessária medicação endovenosa.
Como diagnosticar
O médico solicita
exames neurológicos e um eletroencefalograma (EEG) que pode reforçar o
diagnóstico, ajudar na classificação da epilepsia e investigar a
existência de uma lesão cerebral. Além disso, o médico neurologista
baseia-se na descrição do que acontece com o paciente antes, durante e
depois de uma crise. Se o paciente não se lembra de nada, as pessoas que
acompanharam o episódio servem como testemunhas e devem relatar ao
médico o ocorrido.
Na maioria das vezes, a causa é desconhecida,
mas pode ter origem em ferimentos sofridos na cabeça, recentes ou não.
Ainda assim, é possível passar dias, semanas ou anos entre a ocorrência
da lesão e a primeira convulsão. Traumas na hora do parto, abusos de
álcool e drogas, tumores e outras doenças neurológicas também podem
desencadear o aparecimento da epilepsia.
A doença ocorre com
maior frequência nos países em desenvolvimento, onde há mais
desnutrição, doenças infecciosas e deficiência no atendimento médico. Em
países mais desenvolvidos, a incidência é de aproximadamente 1%. A
epilepsia é mais comum na infância, quando é maior a vulnerabilidade a
infecções do sistema nervoso central (meningite), acidentes
(traumatismos do crânio) e doenças como sarampo, varicela e caxumba,
cujas complicações podem causar crises epilépticas. O problema também
poderá se manifestar com o envelhecimento e suas complicações
vasculares.
O uso do canabidiol
Derivado
da maconha, o uso do canabidiol (CBD) começa a ganhar força no
tratamento de casos como o Mal de Parkinson e a epilepsia. Ficou famoso o
dramático caso da menina Anny Fischer, que chegava a ter até 20 crises
de epilepsia por dia. Sua família foi a primeira de 57 a terem a
importação do canabidiol autorizada pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária. Anny é outra pessoa agora, mas a família teve que batalhar e
ainda batalha muito pela continuidade do tratamento.
A LBE se
posiciona de forma solidária com as famílias das crianças e adultos com
epilepsia refratária, resistente aos fármacos antiepilépticos e
reconhece a realidade de que em muitos casos o médico assistente não tem
outra opção terapêutica. “A pessoa com epilepsia refratária, além de
não ter qualidade de vida, tem risco iminente de morte súbita, de morte
por afogamento, suicídio, grave repercussão cognitiva, comportamental,
além de várias comorbidades (presença ou associação de uma ou mais
doenças num mesmo paciente) psiquiátricas”, afirma a liga.
Para a
LBE, as pesquisas clínicas bem conduzidas metodologicamente são
limitadas, pois há restrição legal ao uso de medicamentos derivados da
Cannabis (popularmente conhecido como maconha), embora o CBD não possua
propriedades psicoativas. A LBE acredita que a segurança e eficácia do
CBD necessitam ser melhor estabelecidas por estudos bem conduzidos, uma
vez que os dados disponíveis na literatura atual não preenchem os
critérios científicos exigidos para que tal composto seja utilizado como
medicamento de forma indiscriminada.
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