Três dias depois do acidente aéreo que matou Eduardo Campos – ex-governador de Pernambuco e candidato à Presidência pelo Partido Socialista Brasileiro –, a residência da família, no bairro de Dois Irmãos, a vinte minutos do Centro do Recife, abrigava cerca de 200 pessoas pelo jardim e cômodos da casa. Eram amigos, parentes, conhecidos, autoridades e admiradores reunidos no velório sem corpo. Os restos mortais do político e das outras seis vítimas da tragédia só chegariam naquela noite de Santos – onde ocorreu o desastre –, para serem velados numa cerimônia pública que reuniria cerca de 160 mil pessoas na sede do governo estadual. Jamais se teve notícia de um acontecimento de tamanha comoção pública na história do Recife.
A porta da casa era vigiada por seguranças. Boa parte da imprensa era vetada, mas populares eram bem-vindos. Os Campos recebiam as visitas com os pés à mostra. Renata, a viúva, usava uma popular marca de chinelos de borracha. A filha, Maria Eduarda, uma rasteirinha dourada. João, um modelo esportivo com listras azuis e vermelhas. Pedro, um emborrachado preto. José estava descalço. Miguel, o caçula de 7 meses, assistia à movimentação da janela do 2º andar, no colo de uma mulher que acariciava seus cabelos arrepiados.
Três dos filhos e pelo menos cinco funcionários da casa trajavam camisetas amarelas estampadas com a frase “Não vamos desistir do Brasil”, proferida por Campos na véspera de sua morte, numa entrevista ao Jornal Nacional, da Globo. A família, como notou a imprensa dias depois, comportava-se como uma rocha sólida: parecia caber a eles mitigar a dor dos inconsoláveis visitantes. Em um determinado momento, uma amiga passou um celular para Renata Campos. “Titico, não se aperreie, não. Aqui está tudo bem, aqui está tudo inteiro”, respondeu. Do outro lado da linha, era possível escutar os soluços do interlocutor. Os Campos não choravam.
Para ter acesso à propriedade, é preciso descer do portão ao rés do chão por uma escada íngreme que dá direto na área recreativa usada pela família. Uma dezena de rosas brancas, já meio murchas, enfeitava a borda da piscina numa cena melancólica – como se ali tivesse sido cenário de uma festa bonita que acabara dias antes.
A casa de Eduardo Campos – construída nos fundos do terreno do sogro, onde havia um campo de futebol – é uma daquelas que todo mundo um dia já visitou: a cerâmica Brennand pelo chão, as paredes em tons de terracota com quadros coloridos, o mobiliário de vime, os bancos de toco de madeira, as bromélias em vasos escuros, os ganchos de rede, o telhado precisando de reparo, os azulejos da piscina carecendo de limpeza. Uma casa feita para abrigar muitos convidados e muitos filhos. Havia um fliperama desligado num canto. Só entre a sala e a varanda, acumulavam-se quatro mesas de jantar. Era ali que Campos costumava se reunir até tarde com amigos e correligionários, tomando uísque e tratando de política.
As gargalhadas e os estalos do gelo no copo – trilha sonora usual de um tempo recente – foram substituídos por sussurros dos convivas que se abraçavam ao se encontrar, debulhando-se em lágrimas para logo depois emendar histórias sobre o dono da casa, frequentemente divertidas. Volta e meia, ouvia-se em tom mais alto um “Éduardo achava que...”, “Éduardo queria que...”. Um ou outro se lembrava das imitações hilárias feitas por Campos.
Havia uma enorme mesa de comida, que era abastecida sem intervalo por um exército de serviçais. Da cozinha, saiu um almoço completo ao meio-dia. Eram travessas e travessas de arroz, carne, farofa, legumes. Jarras de sucos de frutas regionais eram renovadas regularmente. Depois foi a vez de fumegantes bolos de chocolate. Renata Campos se dividia entre os pêsames e a preocupação com os presentes. “Ainda tem café?”, “Toinho já comeu?”, “Ana tá onde?”, indagava a quem estivesse por perto. De vez em quando, entrava na cozinha para verificar o farnel.
Sentado numa das cadeiras que Campos costumava usar nas reuniões políticas, um homem corpulento tinha um jornal aberto à sua frente, cuja capa estampava uma foto sorridente do então candidato. Ele passava as páginas sem se ater às palavras. Pouco depois, descartou o diário numa mesa de centro. Não demorou a que as folhas virassem apoio dos copos. Mulheres maquiadas e homens de camisas listradas trançavam em meio a populares. Um deles circulava anônimo pela sala empunhando uma cartolina com fotos de Campos e dizeres emotivos. No jardim, um senhor negro, com uma camisa de time de futebol, contava a um grupo que Campos sempre lhe arrumava emprego quando precisava. “Ele me dizia: ‘Tu num pode ficar sem trabalhar, não, meu irmão!’” Duas jornalistas muito próximas a Campos choravam copiosamente ao encontrar suas fontes.
As três e meia da tarde, como ocorria desde o dia do acidente, uma missa foi rezada por um padre na varanda principal. As pessoas se espremiam entre poltronas e pilastras, para se aproximar da família. De pé, a viúva e os filhos, na maior parte do tempo de olhos fechados, permaneciam abraçados. Dois deles leram trechos da Bíblia. Muito emocionado, um tio de Campos, o artista plástico Maurício Arraes, passou mal e teve que ser levado para um quarto.
Quando a missa terminou, uma enorme fila de cumprimentos se formou sala adentro. Em pé, na porta do lavabo de casa, Renata recebia e retribuía beijos e abraços calorosos, e tinha comentários específicos para cada um dos presentes. Quando chegou minha vez, ela me abraçou forte, como se nos déssemos há décadas. “Eu não te falei que quando as pessoas conhecessem Eduardo elas iam adorá-lo?” Referia-se a uma frase dita por ela na longa entrevista que me concedera dois meses antes. “Pena que foi assim”, disse.
Em algumas rodas, ouvia-se o burburinho sobre o rumo das eleições. Quem seria o vice? O que seria do PSB? Quem controlaria Marina Silva? Encostados em uma mesa de madeira embaixo de uma árvore frondosa, parentes de Campos de origem cearense aventavam a hipótese de o acidente ter sido criminoso. Falavam em tom baixo, mas convencidos de que haveria uma motivação eleitoral para a tragédia. Comparavam a morte à dos presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, desaparecidos em desastres mal explicados. Alguém comentou, em tom jocoso, que no dia em que o Brasil conseguisse derrubar um avião por sabotagem o país ia dar certo.
Por causa do grande movimento, a pia do lavabo caiu. Na ausência de água, os empregados providenciaram potes de álcool gel para o banheiro. A cada hora, um dos filhos se aproximava vagarosamente da mãe, que o acolhia em um abraço mudo. A alguns conhecidos, João, o mais velho, pedia para divulgar que a família queria achar a correntinha do pai, que tinha cinco medalhas de ouro – o que aconteceu no dia seguinte. Assim como ocorreu com a aliança do assessor de imprensa, Carlos Percol, que foi entregue para sua mulher naquela mesma noite.
A certa altura, Maria Eduarda, a filha, conversava com um amigo encostada em um canto da varanda. “Ainda não caiu a ficha”, disse em voz baixa. “Estamos preocupados com José. Ele disse ontem à mainha: ‘Mas eu só tenho 9 anos. Eu queria ter vivido mais com meu pai.’” O rapaz apertou forte sua mão.
Anoitecia e, mais uma vez, a mesa foi abastecida com novo lanche. Dessa vez, um refogado de carne moída para se comer com pão. No Nordeste, é assim o cachorro-quente. Também mais sucos, mais refrigerantes, mais café, mais bolos. Os convivas equilibravam a comida em guardanapos de papel e pratos de louça branca. Um empresário notou que parecia velório inglês, onde se come e bebe muito recordando o morto. Ali, disse, faltava bebida alcoólica. Segundo ele, Campos iria gostar.
Uma eleitora havia levado o filho, que tem paralisia cerebral, para as condolências. Quando avistou a cadeira de rodas do menino, Renata Campos foi ao seu encontro. Enquanto ela abraçava a criança, o portão da casa se abriu e flashes das câmeras dos fotógrafos que estavam do lado de fora passaram a espocar incessantemente. Marina Silva havia chegado.
Ela desceu as escadas – lânguida e magnânima -– seguida por um entourage de dez pessoas. Entre elas, a vereadora Heloísa Helena, do PSOL, e a deputada Luiza Erundina, do PSB. Logo atrás, estavam o marido de Marina, Fábio – alto, muito branco, de cabelos com gel, calado e de ar misterioso –, e as filhas Mayara e Moara, ambas com cabelos longos, soltos e encaracolados.
Renata viu o burburinho de longe, mas não largou a criança, que tentava se comunicar em vão. Depois pediu licença e avisou: “Tenho que ir porque Marina chegou.”
Marina Silva esperava a viúva no meio da varanda. Ela usava um terninho preto bem cortado e tinha os cabelos amarrados num coque impecável. O figurino contrastava com o de Renata – calça azul e camisa branca com florzinhas azuis, as mangas arregaçadas. Por quase dez minutos, falaram-se olho no olho, segurando-se mutuamente pelos braços, rodeadas por políticos e um marqueteiro.
Ao meu lado, um dirigente do PSB comentou que Marina não havia embarcado no fatídico voo porque não queria se encontrar com o deputado Márcio França, do PSB, que é candidato a vice-governador por São Paulo na chapa de Geraldo Alckmin. Ela sempre foi contra a coligação. Dias depois, França me confirmou a história: “E agora meu apelido é ‘providência divina’”, disse, em referência à frase dita por Marina sobre sua ausência no avião.
Marina Silva se acomodou em uma poltrona antes de orientar uma funcionária da casa: “Eu queria água quente, por favor.” A moça retrucou: “A senhora quer chá?” A candidata reafirmou que era “água quente pura”. E foi isso o que ela bebeu a noite inteira, segurando a xícara branca com as duas mãos em concha.
Pequenos grupos políticos se juntaram. Marina foi rodeada por assessores e correligionários de seu partido, a Rede Sustentabilidade, que ela não conseguiu registrar a tempo das eleições. A essa altura, postada num sofá ao lado do marido e das filhas, ela escrutinava o ambiente. Poucos se atreveram a se aproximar. Era como se houvesse um cordão de isolamento invisível.
Quando correu pela casa a notícia de que os corpos chegariam por volta das dez da noite, a multidão começou a se dispersar, deixando para trás um lastro de copinhos de plástico empilhados pelas mesas, guardanapos de papel amassados pelo chão, um sem-fim de guimbas de cigarro emporcalhando o jardim. Enquanto se despedia de uma amiga, Renata Campos pisou num resto de bolo, largado no gramado. Nem reparou. Um funcionário da casa catava o lixo com as mãos, enfiando-o em um saco preto. Quando viu a capa do jornal com a foto do patrão, encarou o papel, rasgou a parte do retrato, dobrou-o com cuidado e colocou no bolso traseiro da bermuda.
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