sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A vida passa - Carlos Herculano Lopes

A vida passa


Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 31/10/2014


Há pouco tempo, voltando de Salvador, com o Aeroporto Luís Eduardo Magalhães lotado (a fila de embarque para Belo Horizonte estava imensa), meu cunhado, Armando Freire, virou-se para mim e disse com um sorriso maroto: “Vamos, seu Carlos, para a fila especial?”. Ou seja: aquela que privilegia, por direito, mulheres grávidas, portadores de necessidades especiais, maiores de 60 anos, e vai por aí.

Olhei para ele assustado. “Como assim, eu entrar naquela fila, se ainda não cheguei lá?”, pensei, sem assimilar bem a ideia, que a princípio me pareceu, no mínimo, apenas brincadeira. Em seguida, caindo na real, e como se me olhasse no espelho, como devíamos fazer todos os dias: cabelos brancos, uma ruguinha aparecendo aqui e ali, semblante meio cansado, aceitei a sugestão, e lá fomos nós.

E não é que deu certo?. Embarcamos sem maiores problemas, enquanto nossas mulheres, com as quais o tempo foi mais generoso, tiveram de amargar a fila, digamos assim – das pessoas normais. Dentro do avião, devidamente acomodados, rimos bastante da situação, e algumas horas depois estávamos em casa. Não sem antes meu cunhado, que às vezes tem umas tiradas filosóficas, dizer com o mesmo sorriso maroto: “A vida passa, meu mano, e temos de aproveitar enquanto ainda estamos numa boa...”.

De volta à rotina, depois de curtir aquelas férias na Praia do Forte, uma das mais lindas do litoral baiano, com direito, entre outros passeios, a conhecer o famoso Castelo de Garcia D´Avila, soberba construção dos primeiros tempos da colônia, me esqueci daquela sugestão do Armando de lançar mão (mesmo faltando só um pouquinho) dos privilégios reservados aos da “melhor idade”. E continuei, sem problemas, a entrar na fila “normal” do banco, pagar passagem de ônibus, ingresso integral em teatros, e assim por diante.

Se estou contando tudo isso, é para dizer também que, mesmo tendo me esquecido, talvez por pura conveniência, daquele episódio do aeroporto de Salvador, não adiantou muito. Pois a história, dia desses, voltou a se repetir, de maneira diversa, quando tomei um ônibus na Praça Sete. Completamente lotado, pois era horário de pico, eu iria ficar no alto da Avenida Afonso Pena, onde tinha um compromisso.

Numa poltrona, deitada no colo da mãe, uma criança chorava, enquanto essa, na maior paciência, tentava acalmá-la: “Estamos quase chegando, filhinha, estamos quase chegando”. Ao lado delas, uma moça falava no celular, como se mais nada importasse. Numa outra cadeira, um homem obeso, usando óculos escuros, ocupava todo o espaço, e o restante de nós, dezenas de pessoas, viajava em pé.

Foi então que um garoto de cabelos negros, que estava absorvido com a leitura de um livro, levantou de repente os olhos, voltou-se para mim e, como raras vezes ainda ocorre, disse gentilmente, fazendo menção de se levantar: “Quer se sentar aqui, senhor?”. “Muito obrigado, amigo”, respondi. Daí a pouco dei o sinal e desci no ponto da Praça Milton Campos. À noitinha, quando cheguei em casa, liguei para meu cunhado, contei a ele o episódio e, como tinha ocorrido na capital baiana, voltamos a dar boas risadas.

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