segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Aliados no combate à esquistossomose

Derivados do jaborandi e de outras plantas descobertos por cientistas do Instituto de Física São Carlos, da USP, foram testados contra a doença, com resultados promissores


Augusto Pio
Estado de Minas: 13/10/2014




A planta jaborandi, a molécula epiisopiloturina e um casal de Schistosoma, verme transmitido por caramujos
A planta jaborandi, a molécula epiisopiloturina e um casal de Schistosoma, verme transmitido por caramujos


Cientistas do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP estão trabalhando com frentes alternativas para eliminar a esquistossomose, doença causada pelo Schistosoma mansoni, verme hematófago transmitido por caramujos Biomphalaria, que vivem nas águas de rios e que todos os anos causam milhares de mortes no mundo. No Brasil, o mal é conhecido popularmente como xistosa, doença dos caramujos e barriga-d’água, entre outros nomes. É endêmica em 19 estados, atingindo cerca de 6 milhões a 8 milhões de infectados, com 26 milhões em risco. No mundo, são mais de 200 milhões de pessoas infectadas.

Ana Carolina Mafud trabalha no Grupo de Cristalografia do IFSC, onde pesquisa a bioprospecção de produtos naturais – busca por produtos naturais que tenham atividade contra a doença – e o reposicionamento de fármacos, que consiste pesquisar em banco de dados moléculas já testadas e comercializadas contra qualquer doença e observar suas atividades no combate à esquistossomose. “Em relação à bioprospecção, três candidatos já apresentaram resultados satisfatórios: jaborandi, louro e uchi-amarelo”, conta a cientista. “Minha missão dentro dessa pesquisa é entender como esses candidatos a fármacos atuam no organismo e, a partir disso, encontrar outras moléculas que atuem de maneira similar.”

 A epiisopiloturina, um derivado metabólico do jaborandi, descoberto pelo professor José Roberto de Souza de Almeida Leite, da Universidade do Piauí (UFPI), foi testada contra esquistossomose in vitro e in vivo e os resultados (ainda não publicados) foram promissores, além de apresentar baixa toxicidade em células de mamíferos. “Tornou-se um candidato forte ao combate à doença pelos resultados in vivo realizados em roedores, que obtiveram melhores resultados que o Praziquantel (criado na década de 1970 e desenvolvido para atuar na cura da esquistossomose), já que ataca também outras formas do verme, além da forma adulta. Esses resultados, em fase de publicação, foram excelentes e o projeto foi aprovado pelo programa de pesquisa financiado pelo SUS, por meio da Fundação de Pesquisa do Estado do Piaui (Fapepi/CNPq), coordenado pelo professor José Roberto, do Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e Biotecnologia (Biotec/UFPI), que nos autorizou o teste em modelos toxicológicos, permitindo avanços na obtenção do farmoquímico em escala-piloto.”

Paralelamente, testes para a administração da epiisopiloturina em comprimidos estão sendo realizados por Ana Carolina no instituto de física e a expectativa é que esteja no mercado em poucos anos, como uma proposta de medicamento à base de produto natural. Ele não é o único produto natural sendo testado. Embora as pesquisas revelem que atua sobre a esquistossomose, é necessário que haja uma recomendação para o tratamento. “Isso está mais perto de se tornar realidade, já que a molécula é bem conhecida, tanto do ponto de vista de alvos e efeitos colaterais, quanto da toxicidade.”

ELIMINAÇÃO Tal facilidade estimulou a pesquisadora a realizar estudos de reposicionamento de fármacos. “Observamos, por intermédio de dados bibliográficos, que o Diclofenaco (anti-inflamatório não esteroide com ação analgésica) pode ajudar o organismo a não atacar o granuloma (formação de uma estrutura microscópica específica que se assemelha a um grânulo) formado pela eclosão dos ovos do verme no fígado e baço”, descreve. “Testes in vitro nos permitiram confirmar essa suposição e tivemos uma nova surpresa: o Schistosoma também é atacado, fazendo com que a deposição de ovos diminua, além de o Diclofenaco agir sinergisticamente com o Praziquantel.” Ela ressalta que o Praziquantel não foi totalmente efetivo. “Ele não ataca os ovos nem as formas jovens do Schistosoma mansoni, impedindo sua eliminação definitiva do organismo. Uma segunda deficiência do medicamento foi relatada recentemente: o surgimento de casos de resistência ao Praziquantel por algumas linhagens do verme no continente africano.”

Segundo Ana Carolina, outro problema do Praziquantel é que o medicamento tem sido administrado como mistura racêmica, ou seja, tem dois estereoisômeros (compostos que apresentam a mesma fórmula de estrutura, mas diferem na fórmula estereoquímica, ou seja, os átomos assumem diferentes posições relativas no espaço): um com atividade anti-helmíntica e outro sem. “Como se trata de um processo muito caro, a separação não é feita e uma das estruturas não tem atividade, o que implica aumento da concentração do fármaco na dose, tornando os comprimidos muito grandes e de difícil ingestão, principalmente por crianças, bastante afetadas pela doença. Outra dificuldade refere-se à insolubilidade e ao gosto desagradável do medicamento, tornando-o ainda mais indigerível.”

CRISTALOGRAFIA A pesquisadora lembra que, mesmo sendo de classes químicas tão diferentes, o Diclofenato e o Praziquantel podem atacar uma mesma doença. “Partindo de estruturas cristalográficas e utilizando técnicas de bioinformática, consegui resolver a dúvida, graças a uma região comum na composição eletrônica da estrutura dos dois fármacos. A partir dessa descoberta, tenho usado o virtual screening, que consiste na sobreposição virtual das moléculas anotadas, para encontrar candidatos que tenham estruturas moleculares similares ao Praziquantel.”

“No caso de nossa pesquisa, foram selecionadas moléculas que têm similaridade, tanto do ponto de vista 2D, ou seja, a estrutura molecular simples, quanto 3D, que leva as distâncias e ângulos interatômicos e o volume de Van der Waals e potencial eletrostático em consideração. Uma vez encontradas, testes são realizados para ver se a atividade, de fato, existe.” Com relação à bioprospecção de produtos naturais, Ana Carolina e os demais integrantes da pesquisa – a pós-doutoranda Lis S. Miotto e o aluno de graduação Thiago Israel Rubio, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP – utilizam outras técnicas para o desenvolvimento do estudo, entre elas, a resolução da estrutura cristalina por difração de raios X e análises térmicas de TG e DSC, além de outras técnicas adjacentes, como espectroscopia Raman (técnica fotônica de alta resolução, que pode proporcionar, em poucos segundos, informação química e estrutural de qualquer material, composto orgânico ou inorgânico, permitindo, assim, sua identificação). Ana Carolina, especificamente, faz também cálculos ab initio (métodos da química computacional baseados na química quântica) e semiempíricos de constantes físico-químicas. “Todos os dados que fornecemos auxiliam na elaboração dos ensaios in vitro e in vivo, que vêm sendo realizados pelo professor Josué de Moraes, do Núcleo de Pesquisa em Doenças Negligenciadas, da Faculdade de Ciências de Guarulhos.”


Ana Carolina Mafud, do Grupo de Cristalografia do IFSC, estuda a atuação dos produtos naturais no organismo (USP/Divulgação)
Ana Carolina Mafud, do Grupo de Cristalografia do IFSC, estuda a atuação dos produtos naturais no organismo

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