Valor Econômico 13/10/2014
Até na ética somos seletivos. Uns dizem que o drama do País é a corrupção. Outros, que nossa maior infâmia é a miséria.
Um dos fatores que inibem o bom
debate nesta campanha eleitoral - e talvez em todas as nossas - é a
tendência a reduzir a complexa escolha do candidato a uma única questão.
Tucanos questionam petistas: como vocês votam em nomes de um partido
culpado pelo mensalão? Ora, uma pergunta destas, de uma linha só,
suscita respostas de páginas inteiras. O eleitor de Dilma dirá que os
governos petistas apuraram muito mais casos de corrupção do que o
tucano, que denúncias mais graves contra o PSDB ficaram por isso mesmo e
que, tudo somado, os ganhos sociais e econômicos do governo atual e do
anterior superam o de FHC. E o questionador ficará convencido de que o
PT é um partido de gente desonesta. Assim como o eleitor petista não
terá a menor dúvida de que o PSDB sacrificará sem dramas os interesses
do Brasil e de nosso povo, em favor dos caprichos norte-americanos e de
uma elite endinheirada. Ficamos num confronto de surdos.
Deveríamos, em vez disso, reconhecer que na democracia a decisão do voto é complexa.
Conversando com muita gente, de várias classes sociais e Estados, noto que a maior parte tem restrições a todos os candidatos, a todos os partidos. Termina escolhendo o mal menor. Ouço criticarem o lado improvisado e religioso de Marina, a crise econômica legada pelo PSDB em 2002 e a má administração da água em São Paulo, a soberba e a crise hoje divisada no âmbito federal. Votam no nome que consideram menos ruim. Não são votos entusiastas. Provavelmente assim age a maioria. Num país que se polarizou, que parece rachado pela metade, inúmeros se decidem logo antes de votar.
Isto deveria levar-nos a um cuidado maior. Há realmente um racha político no Brasil? Ou o racha se dá só entre os que falam, respiram, sonham política - que são uma minoria, uns do PT, outros do PSDB? Porque um bom terço é mais ou menos indiferente ou, pelo menos, indeciso. No dia de votar os números dão a impressão de que a sociedade quer ou Dilma, ou Aécio, ou Marina. Mas será assim mesmo? Afinal, a segunda maior votação foi a dos que não escolheram nenhum deles, de modo que rola na Internet a piada de que o turno final deveria se dar entre Dilma e Ninguém...
O que fazer? Primeiro de tudo, é preciso um cuidado cognitivo. É facílimo reduzir o adversário à caricatura. Fotos são uma festa para isso. Dilma de rosto fechado ou Aécio com um copo na mão são um presente para o lado oposto. Mas, se as imagens insinuam muito, nada dizem de consistente. Só reforçam o estereótipo. E esse jogo de estereótipos leva muitos a ver o PT como corrupto e o PSDB como traidor do povo.
As acusações usuais ao PT o condenam por suas alianças, esquecendo que são as mesmas, com as mesmas pessoas, que o PSDB firmou quando esteve no governo, e a corrupção, omitindo que há denúncias inquietantes de malfeitos dos dois partidos. Quem quer ir mais fundo deveria procurar a marca registrada de cada partido. Tento destacar as duas.
O PT é o grande partido da inclusão social. Ela nunca se deu em escala comparável neste País. Com ele, ela se tornou política de Estado, irrenunciável. Serra e Alckmin preferiam ressaltar o papel do Plano Real para a inclusão social, mas, se ele foi um pré-requisito para tanto, as estatísticas mostram que a inclusão mesmo veio nos governos petistas. Aécio Neves, aliás, foi o primeiro presidenciável tucano a perceber isso, ao contrário de seus predecessores na candidatura. Suas chances eleitorais estão ligadas a esse reconhecimento. E a força do PT está no fato de continuar trabalhando pela inclusão social, que avançou muito, mas não está concluída. Reverter o estrago de séculos é tarefa de décadas.
Já o PSDB é o grande partido da preocupação econômica. Não quer dizer que o PT seja um bando de malucos irresponsáveis com a economia, nem que os tucanos sejam indiferentes à política social. Mas cada um tem sua ênfase. E o problema é que isso gera dois monólogos de surdos. Um fala de programas sociais, o outro de economia. Os dois temas são necessários, mas se discursa como se cada um excluísse o outro.
E o mesmo, no plano da ética. Para uma parte da sociedade, que está na oposição, a maior ofensa à ética está nos atos de corrupção atribuídos ao PT. (Como desde 2006 sempre surgem denúncias severas a poucos dias da eleição, entende-se que os petistas desconfiem delas.) Para outra parte, que vota no PT, a maior chaga ética está em convivermos com tanta miséria e alta pobreza. Mas é raríssimo eu ler na mídia denúncias a esta mácula constitutiva de nossa sociedade. Não por acaso, neste período eleitoral, o artigo mais forte sobre a miséria saiu na edição brasileira de "El País", não na imprensa propriamente nacional ("A busca pelos 'excluídos do Bolsa Família' encontra os brasileiros invisíveis", em 20 de setembro). "El País", se tem simpatia por um dos lados em confronto, não é certamente pelo PT... Mas, europeu, ele percebe que há algo intolerável aqui. Se denuncia a corrupção, que seguramente é inadmissível e deve ser extirpada de nossos costumes, também ataca a miséria.
Infelizmente, até na ética somos seletivos. E isto só nos prejudica, porque agendas que precisam ser combinadas acabam se hostilizando. Talvez o repentino sucesso de Marina se tenha devido à compreensão de que essa polarização faz mal à sociedade. No anseio de destruir o adversário (que um velho publicitário chamou, outro dia, de "inimigo"), dificulta-se a convivência, suprime-se o diálogo e reduzem-se as chances de resolver os problemas do País. Por isso têm sido pouco fecundas nossas campanhas eleitorais.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
Deveríamos, em vez disso, reconhecer que na democracia a decisão do voto é complexa.
Conversando com muita gente, de várias classes sociais e Estados, noto que a maior parte tem restrições a todos os candidatos, a todos os partidos. Termina escolhendo o mal menor. Ouço criticarem o lado improvisado e religioso de Marina, a crise econômica legada pelo PSDB em 2002 e a má administração da água em São Paulo, a soberba e a crise hoje divisada no âmbito federal. Votam no nome que consideram menos ruim. Não são votos entusiastas. Provavelmente assim age a maioria. Num país que se polarizou, que parece rachado pela metade, inúmeros se decidem logo antes de votar.
Isto deveria levar-nos a um cuidado maior. Há realmente um racha político no Brasil? Ou o racha se dá só entre os que falam, respiram, sonham política - que são uma minoria, uns do PT, outros do PSDB? Porque um bom terço é mais ou menos indiferente ou, pelo menos, indeciso. No dia de votar os números dão a impressão de que a sociedade quer ou Dilma, ou Aécio, ou Marina. Mas será assim mesmo? Afinal, a segunda maior votação foi a dos que não escolheram nenhum deles, de modo que rola na Internet a piada de que o turno final deveria se dar entre Dilma e Ninguém...
Ver bem qual a marca registrada dos candidatos
O que fazer? Primeiro de tudo, é preciso um cuidado cognitivo. É facílimo reduzir o adversário à caricatura. Fotos são uma festa para isso. Dilma de rosto fechado ou Aécio com um copo na mão são um presente para o lado oposto. Mas, se as imagens insinuam muito, nada dizem de consistente. Só reforçam o estereótipo. E esse jogo de estereótipos leva muitos a ver o PT como corrupto e o PSDB como traidor do povo.
As acusações usuais ao PT o condenam por suas alianças, esquecendo que são as mesmas, com as mesmas pessoas, que o PSDB firmou quando esteve no governo, e a corrupção, omitindo que há denúncias inquietantes de malfeitos dos dois partidos. Quem quer ir mais fundo deveria procurar a marca registrada de cada partido. Tento destacar as duas.
O PT é o grande partido da inclusão social. Ela nunca se deu em escala comparável neste País. Com ele, ela se tornou política de Estado, irrenunciável. Serra e Alckmin preferiam ressaltar o papel do Plano Real para a inclusão social, mas, se ele foi um pré-requisito para tanto, as estatísticas mostram que a inclusão mesmo veio nos governos petistas. Aécio Neves, aliás, foi o primeiro presidenciável tucano a perceber isso, ao contrário de seus predecessores na candidatura. Suas chances eleitorais estão ligadas a esse reconhecimento. E a força do PT está no fato de continuar trabalhando pela inclusão social, que avançou muito, mas não está concluída. Reverter o estrago de séculos é tarefa de décadas.
Já o PSDB é o grande partido da preocupação econômica. Não quer dizer que o PT seja um bando de malucos irresponsáveis com a economia, nem que os tucanos sejam indiferentes à política social. Mas cada um tem sua ênfase. E o problema é que isso gera dois monólogos de surdos. Um fala de programas sociais, o outro de economia. Os dois temas são necessários, mas se discursa como se cada um excluísse o outro.
E o mesmo, no plano da ética. Para uma parte da sociedade, que está na oposição, a maior ofensa à ética está nos atos de corrupção atribuídos ao PT. (Como desde 2006 sempre surgem denúncias severas a poucos dias da eleição, entende-se que os petistas desconfiem delas.) Para outra parte, que vota no PT, a maior chaga ética está em convivermos com tanta miséria e alta pobreza. Mas é raríssimo eu ler na mídia denúncias a esta mácula constitutiva de nossa sociedade. Não por acaso, neste período eleitoral, o artigo mais forte sobre a miséria saiu na edição brasileira de "El País", não na imprensa propriamente nacional ("A busca pelos 'excluídos do Bolsa Família' encontra os brasileiros invisíveis", em 20 de setembro). "El País", se tem simpatia por um dos lados em confronto, não é certamente pelo PT... Mas, europeu, ele percebe que há algo intolerável aqui. Se denuncia a corrupção, que seguramente é inadmissível e deve ser extirpada de nossos costumes, também ataca a miséria.
Infelizmente, até na ética somos seletivos. E isto só nos prejudica, porque agendas que precisam ser combinadas acabam se hostilizando. Talvez o repentino sucesso de Marina se tenha devido à compreensão de que essa polarização faz mal à sociedade. No anseio de destruir o adversário (que um velho publicitário chamou, outro dia, de "inimigo"), dificulta-se a convivência, suprime-se o diálogo e reduzem-se as chances de resolver os problemas do País. Por isso têm sido pouco fecundas nossas campanhas eleitorais.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
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