sábado, 4 de outubro de 2014

ARNALDO VIANA » Eles sabiam... (2)

ARNALDO VIANA
Estado de Minas: 04/10/2014 



…e como sabiam. Ninguém jamais soube por que, mas sabiam. Não era comum o homem chegar do roçado antes das seis horas. Era certo que o trabalho findava às quatro da tarde, mas ele ficava por lá um pouco mais. Cuidava de limpar, amolar e guardar as ferramentas. Deixar tudo pronto para o outro dia. Era época de enterrar as manivas, de semear o milho. A mulher estava lavando roupa no terreiro, quando o homem passou. Ela olhou o céu e calculou que as cinco horas ainda estavam por chegar. Ele não quis janta. Reclamava de “tonteza”, dor na boca do estômago e na cabeça. Uma vontade de vomitar que não vingava. Deitou-se na cama de varas, coberta pela manta de couro do boi, com as mãos fechadas sobre a têmpora. A mulher nunca o vira doente daquele jeito, amuado, de deitar. Foi à horta, colheu folhas de erva-cidreira e preparou um chá. O homem engoliu a beberagem e nada de melhora. A mulher pensou em mandar o filho mais velho, moleque de 12 para 13 anos, arrear uma mula e ir ao comércio chamar o doutor. Mas eram duas léguas e meia debaixo de mata e já estava escuro. Sabia que é à noite que as onças saem para comer.

A mulher deu mais uma olhada no homem. Ele estava ficando roxo. Ela sabia o que era e nada lhe vinha à cabeça para curar congestão. Zanzava entre cozinha e quarto. Não podia perder o companheiro naquele fim de mundo, com cinco bocas para alimentar. Tirou o rosário do dependuro na parede de adobe e apegou-se a Nossa Senhora. Caminhou para o terreiro e mal ultrapassou a porta viu a planta em um canto do chão. Arrancou-a pela raiz e a macerou no pilão de pilar alho e ervas de tempero. Espremeu a massa, botou o caldo grosso na caneca esmaltada e o levou ao homem. Ele bebeu, sentado, com o penico ao lado da cama. Não demorou e expulsou do estômago uma bola preta, rajada de sangue. E foi mudando de cor, de roxo para amarelo. Uma hora depois sentiu-se aliviado. O sono chegou. O sossego também. No dia seguinte, o sol ainda se aprumava atrás do morro e o menino já cavalgava a mula para chamar o doutor. Duas léguas e meia debaixo de mata. “Diga a ele filho que é congestão.”

Quando o médico chegou o tempo avançava pelo meio-dia. Tirou a maleta da cabeça da sela do cavalo magro e velho, deu bom-dia à mulher, pediu licença e caminhou para o quarto. O homem o esperava, sentado na cama. Examinou, conversou. Conversou, examinou. Recomendou uns três dias de repouso. Em caso de fraqueza, mais descanso. O doutor saiu do quarto. A mulher o esperava do lado de fora. Ele tirou da bolsa um punhado de pílulas. Era para o homem tomar duas por dia, depois do almoço e do jantar. E não deixou de perguntar o que a mulher dera ao marido. Ela pediu para esperar, foi até o terreiro e pegou a rama em cima do jirau. Mostrou a planta ao doutor. “É erva-de-santa-maria, foi Nossa Senhora quem a mostrou.” O médico examinou a planta e disse: “A senhora salvou a vida dele”. Recomendou comida leve. Canja de galinha sem gordura e com pouco sal. Sopa de inhame, cará, coisa assim.

Levado pela mulher, o doutor almoçou na mesa da cozinha. Feijão batido, arroz, costela de porco e mamão verde refogado. Levantou-se, agradeceu e disse que precisava pegar a estrada. Subiu no cavalo e na cabeça da sela, além da maleta, levava uma galinha amarrada pelos pés. Não que tivesse pedido paga. Foi por insistência da mulher e naquelas bandas era até pecado enjeitar uma oferenda. Amarrada na sela uma cabaça cheia de água fresca da bica. Passava das duas horas da tarde. Pouco mais de uma légua depois parou sob frondosa gameleira. Passou um lenço na testa, bebeu um gole da cabaça e pensou naquela mulher, olhos serenos, cor de índia, vestido sujo de cinzas do fogão, com as folhas nas mãos calejadas. Não foi propriamente a santa, pensou o doutor. Ela sabia do poder da erva. Mas o conhecimento só veio na hora da precisão. Prometeu sob a árvore generosa nunca abandonar aquela gente. E já se encaminhava para a montaria quando se lembrou de frase dita por um mestre no longínquo tempo da escola de medicina: “Cuidado com as emoções, elas podem fazer de você um mentiroso”. Voltou à árvore e retirou a promessa. “Se não sabemos o que nos espera no dia de hoje, quisera amanhã.” Montou, açoitou e o cavalo magro e velho seguiu viagem.

Lembrete do Negão: Amanhã, é dia da coerência. Da escolha certa e segura. Da razão.

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