quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Relatos selvagens - Martha Medeiros

Zero Hora 05/11/2014

O mundo é um hospício. Portanto, deve-se congratular a maioria de nós que não aceita provocações e toca sua vida sem entrar em confusão, deve-se aplaudir os que levam rasteiras e não partem para o olho por olho, deve-se comemorar o fato de sermos resistentes a todos os desaforos que nos fazem, pois se fôssemos excessivamente esquentados, raivosos e incontroláveis, não sobraria um vivente para contar a história.
Não que tenhamos que ser pangarés: indignar-se é da nossa natureza. Mas fazer tudo o que dá na telha, atendendo apenas aos nossos impulsos primitivos, nos levaria a um quadro semelhante ao mostrado no genial Relatos Selvagens, filme que está provocando gargalhadas e reflexões: como é que aguentamos tanto estresse? Afora os malucos, a maioria de nós é civilizada até demais.
O filme é produzido por Pedro Almodóvar, que se encantou com o roteiro nonsense do argentino Damián Szifron, diretor dos seis episódios independentes que constituem a obra, um deles protagonizado por Ricardo Darín. O personagem de Darín é um engenheiro especializado em implosões, mas que explode diante da burocracia e do pouco-caso que os serviços públicos dispensam ao contribuinte.
Nos outros cinco episódios, descobre-se que todos os passageiros de um avião são desafetos do piloto, uma cozinheira de restaurante de beira de estrada induz a garçonete a envenenar um cliente sacana, um milionário corrompe o jardineiro para que ele assuma a autoria de um acidente que não provocou, dois motoristas se desentendem na estrada e, por fim, o mais divertido de todos: uma noiva descobre em plena festa de casamento que o noivo é amante de uma das convidadas.
O episódio de abertura é uma bizarrice, mas os outros podem acontecer com qualquer um de nós, só que sabemos a hora de interromper a cena antes de chegar às últimas consequências. O filme, não. O filme vai até as últimas consequências sem negociar com a moral, com a lei e com a ponderação.
Relatos Selvagens funde os conceitos de real e irreal, abre as cancelas que confinam nossas emoções e nos deixa cara a cara com “o que poderia ter sido”. Criativo, ousado, sua comunicabilidade é imediata e contagiante. Apesar de absurdos, acreditamos em cada personagem e torcemos por eles, não por serem bons, mas por apresentarem uma demência que nos comove. A piração é tanta, que faz parecer que na tela estão crianças enfurecidas por causa de um brinquedo quebrado. Não conseguimos vê-los como criminosos. Tudo não passa de birra, apenas.


O filme nos ganha porque ultrapassa nosso espanto racional e adulto até alcançar nosso riso descompromissado e juvenil, o riso típico de quem ainda não formou senso crítico, não tem juízo. No final das contas, toda selvageria é isso, uma volta às origens.

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