Dilma venceu a eleição ao assumir uma imagem de esquerda. Terá que conciliá-la com sua nova política econômica
As análises são quase unânimes: a eleição de 2014 marcou forte avanço conservador, não apenas no espectro político tradicional, em que a esquerda seria progressista e a direita, conservadora, mas também no campo dos costumes, no qual parlamentares opostos às novas formas de vida afetiva ganharam pontos. O desplante com que um deputado, useiro e vezeiro em hostilizar a liberdade pessoal, se permitiu usar a palavra "estupro" é significativo disso.
Mesmo assim, se Dilma foi reeleita, foi graças à esquerda. Não podemos, numa análise fria dos acontecimentos, ignorar este fato. Isso não quer dizer que foi a esquerda quem elegeu Dilma. Ela teve votos de famílias políticas bem variadas. Mas no momento decisivo, em que se formularam os argumentos decisivos para a reeleição, em que se construiu o imaginário que forjaria a unidade que a elegeu, o discurso foi de esquerda.
Dilma e seu governo não foram - nem são - de esquerda. Porém, na reta final da campanha, o que a levou à vitória foi uma sensibilidade deste lado político. Foi isso o que irritou tanto seus principais adversários. Possivelmente não foi tanto a forma, os "maus modos", o que os revoltou (a implacável "desconstrução" de Marina e, em menor escala, de Aécio), mas sim o conteúdo do que foi levantado contra ambos. Poderia ter sido mais leve; irritaria igual.
Campanha de Dilma foi mais à esquerda que seu governo
Pois onde esteve a esquerda na campanha? Na defesa dos programas sociais. Sim, Aécio fez bem em assumir o Bolsa Família. Foi o primeiro presidenciável tucano a fazê-lo de maneira decidida. Com isso, se não ganhou a eleição, teve uma votação consagradora e garantiu para o PSDB a liderança na oposição - uma posição que este ano até correu risco. Mas acontece que, no arsenal petista contra a miséria, o Bolsa Família foi cedendo lugar ao aumento constante do salário mínimo até o patamar constitucional, que aliás não é tão diferente do seu valor original na década de 1940. A franqueza de Arminio Fraga, ao dizer que seria difícil manter os aumentos reais do salário mínimo, pode ter custado votos ao candidato tucano.
Afirmei mais de uma vez que nem os tucanos queriam acabar com os programas sociais, nem os petistas destruir a economia: mas que cada lado tinha uma prioridade. Do lado tucano, a ênfase na racionalidade dos agentes econômicos, para promoverem o desenvolvimento, acarretava implicitamente a descrença na racionalidade dos movimentos sociais. Ora, o eixo do ataque "de esquerda" aos dois candidatos de oposição consistiu justamente nisso: nenhum deles teria compromisso prioritário com o combate à pobreza. Essa percepção emplacou.
Agora, dá para dizer que, com a nomeação para as pastas econômicas, foram plagiados os programas de Aécio e Marina, ou traída a esquerda que apoiou Dilma? Não. A economia é o meio imprescindível para as mudanças sociais que a candidata reeleita quer implantar. Se tiver de escolher entre o desenvolvimentismo praticado nos últimos anos e uma economia mais ortodoxa, ela optará pelo meio que preserve a capacidade estatal de investir no setor social - hoje, o segundo.
Dilma certamente tem suas preferências econômicas. Não são as do grande empresariado. Ela tentou adotá-las entre 2011 e 2014. Economista, ao contrário de Lula, suas convicções econômicas são mais fortes do que as do seu antecessor no cargo. Mas, mesmo assim, o crucial é a política social. Daí que faça sentido sacrificar certos anéis para salvar os dedos - abrindo mão de parte, ao menos, da política econômica Dilma 1.0 para garantir os recursos, tributários ou de capital, necessários para dar continuidade aos avanços sociais.
Fique muito claro: sem avanços sociais, adeus PT. Daí, o papel, necessário mas subordinado, da economia no segundo mandato. Num governo Aécio, Arminio seria, pelo menos nos primeiros tempos, o "chief minister". Já Dilma fez questão de não aparecer na posse de seus ministros da área econômica. Eles podem ter condicionado sua aceitação dos cargos à prévia aprovação, pelo Congresso, da mudança de metas na economia. Podem ter dito que não queriam misturar suas mãos pró-mercado com isso. Ela não teria como recusar essa limpeza prévia de terreno. Mas, de sua parte, Dilma deve ter querido mostrar que a nova política econômica é decisiva, porém só como meio, não como fim. Os fins continuam sendo sociais. Sem isso, o PT vira um PSDB.
Quer isso dizer que o poder está com a esquerda? Não, nem no sonho. Na verdade, a esquerda decidiu apoiar uma presidenta que valoriza os programas sociais, sim, mas não é propriamente de esquerda. Como Dilma vai conciliar uma certa austeridade na economia com investimentos sociais, não será simples. Mas este é o único caminho que faz sentido. Dilma e o PT sabem muito bem que, se for para agirem como agiram os últimos governos socialistas na Espanha e Portugal, ou está agindo o último na França, aplicando a política dos sonhos da direita... bem, esse será o melhor meio de perder as próximas eleições. Dilma e o PT têm que agir de outro modo. Isso vai requerer habilidade política? Toda a que conseguirem mobilizar.
Esse caminho pode dar errado, é claro. Mas a política é a arte de lidar com a quadratura do círculo. FHC e Lula foram mestres nisso. Na política, estica-se o limite do possível. Uma coisa é fato: os economistas têm razão em que não se pode ignorar o limite realista que é haver dinheiro para promover medidas sociais. Mas a novidade é que, em sociedades em intensa democratização, o que se dá pela inclusão dos mais pobres, também não é possível retroceder, sem causar problemas sérios.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
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