Zero Hora 21/12/2014
Já
escrevi sobre o mendigo que encontrei em Lisboa, aquele que trata sua mendicância
como um show de humor e aceita esmolas online, e hoje vou falar de Maria
Adelaide, que conheci em Cascais.
Eram
15h e eu ainda não havia almoçado. Escolhi um restaurante simples, com mesinhas
num calçadão. O lugar estava vazio, mas logo vi que se aproximava uma senhora
de idade que gesticulava muito e abordava a todos. Cansada, sentou-se ao meu
lado. Dois palmos separavam uma mesa da outra. Eu havia ganhado companhia.
Só que
ela não comeu nada. Pediu apenas um uísque e a minha atenção: contou que havia
sido uma famosa corretora, que ganhara muito dinheiro e perdera tudo, que fora
amante de um homem casado por 20 anos, que já havia disputado corridas de
carro, que havia aprendido a tourear, que estivera na inauguração de Brasília,
que fora abençoada pelo Papa João Paulo II, que havia sido amiga íntima da
fadista Amália Rodrigues, e eu ali, encantada com aquele personagem pronto, saído
de um livro que não havia sido escrito – ainda.
Nem
em tudo acreditei. O que me impressionou foi sua vitalidade: ela não parava de
falar. Quando não era comigo, era com os pedestres que passavam. Para todos,
tinha uma palavra. Para o turista que vinha de bicicleta: “Salta, não pode
andar com isso no calçadão, ó pá”.
Para
o casal de namorados: “Não confiem um no outro!”. Para o DJ que estava na
janela de um bar: “Só ligue o som depois que me for!”. Ao garotão com o jeans
rasgado: “Isso lá é roupa, menino?”. Mas sempre com um sorriso gigante no
rosto, orgulhosa da própria inconveniência. Depois de cada abordagem, batia na
própria coxa e dizia: Ssou humana, sou humana”. Seu bordão. “Sou humana.”
O
pessoal logo entendia que era um personagem folclórico, mas, quando o assédio
era infantil, o clima pesava. A cada criança que surgia, ela dizia aos pais: “Me
empresta seu filho um bocadinho”. Os pais sorriam amarelo e afastavam os miúdos
de seus braços, enquanto ela me confidenciava: “Enlouqueço com crianças”. Nunca
havia sido mãe.
Pedimos
a conta, paguei o uísque dela e mais uma vez me veio à cabeça a expressão “couvert
artístico”, a mesma com que batizei aquela cena do mendigo na rua. Foi quando
ela levantou, abriu sua bolsa e colocou em cima da minha mesa diversas folhas
xerocadas onde apareciam fotos dela em Brasília, fotos dela com o Papa, com Amália
Rodrigues, bilhetes pessoais, recortes de jornal. Um dossiê.
Só então
perguntou o que eu fazia. Respondi que era escritora. Ela me deu um beijo no
rosto como quem diz: boa piada! E se foi.
Dia
seguinte, passei de bicicleta por ela em outra rua. Abordava os transeuntes,
claro. Ao me ver, já começou: “Salta, salta!”. De repente, me reconheceu e
apreensiva, perguntou: “Você não é escritora de verdade, é?”.
“Vai
render apenas uma crônica, se você permitir”. Dada a permissão, continuei a
pedalar até chegar aqui.
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