Nascida no Japão, a
artista brasileira que fez da simplicidade um princípio da arte morreu
ontem em SP, de complicações advindas de uma pneumonia; ela estava na
UTI desde terça
Walter Sebastião
Estado de Minas: 13/02/2015Tomie Ohtake dizia que sua obra é ocidental, influenciada pela cultura japonesa e em eterna busca da síntese |
Ela pintou até o último minuto.
A artista plástica Tomie Ohtake morreu ontem, aos 101 anos, depois de ficar internada desde terça-feira na UTI do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista, vítima de complicações advindas de uma pneumonia.
O corpo será cremado em cerimônia íntima para a família, depois de ser velado no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulista. Figura emblemática da cultura brasileira, ela criou um vocabulário particular em seis décadas de carreira.
A pintora e escultora deixa os filhos Ruy, arquiteto, e Ricardo, que dirige o centro cultural batizado com o nome dela, além de dois netos. Tomie acreditava que as artes visuais não podiam ser traduzidas em palavras. “O trabalho fala por si. Quando a gente fala muito, acaba estragando”, afirmou ela, em 2003, ao Estado de Minas.
Tomie Ohtake nasceu em Kyoto (Japão), em 1913. Desenhou desde criança, já que estudou numa escola que dava ênfase às atividades artísticas. Em 1938, veio para o Brasil, para visitar o irmão. A viagem, segundo contou, marcou sua memória, sobretudo pela luz amarelada que encontro aqui, o calor e a umidade dos trópicos.
Como vivia-se a iminência do início da II Guerra Mundial, Tomie decide ficar em São Paulo, onde se casa e tem dois filhos - Ruy e Ricardo Ohtake. As primeiras pinturas profissionais são feitas quando ela tem 39 anos. Ela foi incentivada pelo pintor Keisuke Sugano, que visitou o Brasil e ofereceu àqueles que o hospedaram algumas aulas, em agradecimento à acolhida.
Os primeiros trabalhos vão ser ruas e vistas de São Paulo, além de naturezas mortas e retratos. “Quando comecei a pintar, já tinha quase 40 anos e mais de 15 anos morando no Brasil. Já era muito evidente o meu espírito brasileiro, ou ocidental, portanto já distante da origem oriental. Mas devo ter tido, sempre, até hoje, influência da terra onde eu nasci”, disse a artista, em 2005, relativizando peso do Japão na sua linguagem.
Abstração
Seu movimento em direção à abstração começa a partir dos anos 1950, com as figuras dando lugar a formas e campos de cor. “A abstração permite uma maior liberdade para se organizar o espaço da tela. A síntese da obra fica mais clara”, explicou Tomie Ohtake, em 2006.
É de 1957 a exposição, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), em que apresenta imagens que equilibram aspectos informais (manchas, texturas, formas orgânicas) com construções geométricas. Na mesma época, entre 1959 e 1961, participa de salões de arte, conquistando respeito de muitos, que vai manter até o final da sua vida.
Integram o círculo de amigos da artista o escultor Willy de Castro, o pintor Hercules Barsotti, o crítico Mario Pedrosa, personagens que participam e vão dar tom vanguardista à produção brasileira da época. Vem deste momento a série de pinturas realizadas com olhos vendados, evocando “pensamento interior”, sensações, e não imagens como observou Tomie Ohtake.
O impacto dessas obras resulta em sua participação na Bienal de São Paulo de 1961. Tomie naturaliza-se brasileira, em 1968. Em 1969, com outros artistas, recusa-se a participar da X Bienal, em protesto contra a ditadura militar. Participa da XX e XXIII Bienais, na última, com sala especial.
A partir de 1972, passa a trabalhar com gravuras. E a partir dos anos 1980 faz grandes painéis e esculturas públicas, entre elas, uma em Belo Horizonte, em frente à sede da Usiminas, além de obras em Araxá e Ipatinga.
A arte de Tomie Ohtake tem como berço um momento de atualização da produção brasileira, nos anos 1950, que teve como foco irradiador a Bienal de São Paulo, cuja primeira edição é de 1951. É o contexto que forja a discussão sobre o desejo de uma arte brasileira que vá além da figuração do realismo social, que vem desde os anos 1930, de herança modernista.
A abstração parece aos jovens artistas da época a estética adequada a este projeto. Tomie Othake participa intensamente do processo, mas não se alinha aos movimentos, preferindo apostar em poética pessoal. Com liberdade, vale-se de formas abertas a diversas referências, em especial arquitetura, paisagem e caligrafia.
Em Belo Horizonte, escultura de Tomie Ohtake está instalada na frente da sede da Usiminas, na Pampulha |
RIGOR E LIBERDADE
Pode-se dizer que a pintura, no Brasil, tem história recente e breve. Afinal, existe, basicamente, a partir do século XVIII e só se desenvolve com mais vigor a partir da segunda metade do século XIX. Neste contexto rarefeito, melhor que afirmar grandezas históricas é curtir o brilho da singularidade de certos autores e obras. E, aqui, Tomie Ohtake brilha muito.
O que a artista fez, ao longo de décadas, foi enfatizar os acontecimentos plásticos. Isto é: as imagens dela põem o espectador, reiteradamente, diante do choque ou articulação de manchas e superfícies. Discurso avesso a figurações, mas que, em especial nas obras da maturidade, saboreia alusões à natureza.
As obras de Tomie Ohthake são, em geral, singelas. Com esmero caprichoso, ela coloca em diálogo algumas poucas formas e cores, relativamente discretas (ainda que existam momentos de sedução pela vibração da cor).
Não são peças que buscam o impacto visual. De fato, registram, de forma serena e com olhar curioso, um território onde forças distintas se enfrentam, gerando imagens intrigantes, belas e surpreendentes. Imagens que só podem ser atingidas com cultivada disciplina e gosto pela espontaneidade. Esse é um ponto de vista que a artista desenvolveu de modo sistemático, com confiança absoluta nos valores estritamente estéticos, afirmados como matriz primeira e fundamental do que leva o nome de arte.
Impressiona como os trabalhos de Tomie Ohtake, sem abrir mão da simplicidade e de uma linguagem praticamente direta, acabam tocando em questões complexas, como são o tema do rigor e da liberdade. Ou ainda as tensões entre forma e o informe. Está posto o drama da ocupação do espaço. E, ainda, detalhada especulação sobre razão e intuição. Chama atenção o materialismo que flerta com as flutuações do espírito, despreocupado em chegar a conciliação entre os opostos.
A observação das obras de Tomie Othake sugere que esse caminho é um argumento pessoal, descoberto e desenvolvido com persistência. Modulado e burilado por maturidade existencial e vida de longa dedicação às artes, aspectos que fazem com que seja difícil segmentar o realizado pela artista ou aprisioná-la em um momento específico da arte.
Tomie Ohtake foi uma artista única, diferente, dedicada ao que acreditava. Uma artista que, sem abandonar a linha estética que elegeu, soube dialogar e incorporar o que considerou importante de cada transformação das artes que presenciou.
Pintura exposta na última grande exposição de Tomie Ohtake em BH, no Minas Tênis Clube, em 2013 |
Repercussão
“O comentário que posso fazer é uma palavra só, em maiúsculo: BEIJO TRANSUNIVERSAL!!! Beijo transuniversal que atravessa o universo. Foram meses muito ricos. A vida dela, pela vitalidade que sempre teve, o vigor que ela sempre teve. Ela queria ter alta do hospital para continuar trabalhando.”
. Ruy Ohtake, arquiteto, filho de Tomie Ohtake
“Tomie deixa em Minas obras representativas do seu gênio criador. Basta lembrar as esculturas vistas em praças de BH e Araxá. As pinturas e as obras tridimensionais constituem um legado que se particulariza na arte brasileira do século que ela viveu intensamente”
. Angelo Oswaldo, secretário de Estado da Cultura de MG
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