Valor Econômico -
20/02/2015
Passou o carnaval e, como estamos acostumados a afirmar, o ano começou.
Feliz 2015, prezados leitores e leitoras! Aliás, passamos dois meses
dizendo "feliz 2015" para todos aqueles que encontramos apenas depois do
Réveillon. Do ponto de vista formal, o ano começou com a posse de
Dilma. Do ponto de vista substantivo, na política, o ano começou um mês
depois, em 1º de fevereiro, com a eleição de Eduardo Cunha para a
presidência da Câmara. Os dois eventos se juntam agora, no início do ano
pós-carnavalesco, o ano que vale para um país chamado Brasil.
A
eleição de Cunha para a presidência da Câmara representa uma derrota
significativa para o governo. Trata-se da "mãe de todas as derrotas" que
se seguiram, e foram várias. Há duas comissões parlamentares, no âmbito
da Câmara dos Deputados, que são de grande importância para o processo
legislativo, em particular quando o governo Dilma terá que aprovar novas
medidas econômicas, que são uma inflexão na comparação com a política
macroeconômica adotada no primeiro mandato. Trata-se da Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) e da Comissão de Finanças e Tributação
(CFT). Os parlamentares que estarão à frente das duas comissões são
figuras de confiança de Cunha e, portanto, não necessariamente vão
defender a posição do governo.
Todas as medidas econômicas
gestadas no Ministério da Fazenda, sob o comando de Joaquim Levy, terão
que passar pelas duas Comissões. Uma eventual rota de conflito entre
Dilma e Cunha pode ter como consequência a oposição do presidente da
Câmara aos principais pontos do ajuste fiscal, e a consequente derrota
do governo. Pode ser que as leis que trazem as medidas econômicas sejam
desfiguradas já nas duas Comissões.
O governo também foi
derrotado na formação da Comissão de Reforma Política. Seu presidente é
Rodrigo Maia, do DEM, aguerrido e histórico opositor do PT. O partido de
Lula vinha há anos discutindo e cultivando mudanças no sistema político
brasileiro. Construir é sempre uma tarefa árdua e longa; destruir é
algo rápido e certeiro. A construção do consenso a que o PT se dedicava,
no que tange à reforma política, terá sido inútil após a escolha de
Maia para essa comissão. As iniciativas do PT serão, de agora em diante,
sumariamente destruídas.
Antes do Carnaval, foi votado e
aprovado pelos deputados o assim chamado orçamento impositivo. Mais uma
vez, após a eleição de Cunha para a presidência da Câmara, o governo foi
derrotado. A nova lei obriga o governo a executar as emendas
individuais ao orçamento da União que os parlamentares apresentam e
aprovam. No passado, as emendas aprovadas tinham sua execução
orçamentária barganhada entre o parlamentar interessado na emenda e o
governo. Caso o parlamentar votasse contra o governo, dificilmente os
recursos seriam liberados. Os fiéis ao governo, porém, tinham suas
emendas devidamente executadas. A aprovação do orçamento impositivo
aumentou a independência da Câmara em relação ao Poder Executivo.
A
Câmara é dirigida fundamentalmente por seu presidente. Mas a mesa tem
vários outros cargos: primeiro vice-presidente, primeiro secretário e
suplentes, entre outros. Em todos os governos, desde Fernando Henrique, o
partido do presidente sempre controlou um ou mais cargos da mesa da
Câmara. Trata-se de um fato inédito o que acabou de acontecer em
fevereiro: o PT não tem nenhum cargo neste importante órgão diretivo do
processo legislativo.
Vem sendo divulgado pela mídia que
interessa ao governo diminuir o peso relativo do PMDB. Pode ser
factualmente verdade, pode não ser. O que importa é a percepção dos
parlamentares do PMDB. Tudo indica que seus deputados realmente
acreditam nessa intenção do governo. Um dos sinais seria a eventual
criação do Partido Liberal, o PL, que poderia nascer com 30 deputados.
Feito isso, caso o PL fosse incorporado por outro partido, e se esse
outro partido fosse grande o suficiente, poderia surgir na Camara um
partido maior que o PMDB.
Cunha já agiu para impedir ou
dificultar que isso ocorra. Ele apresentou uma proposta legislativa que
impede que partidos recém-criados sejam incorporados por partidos já
existentes antes de cinco anos de existência. Caso essa iniciativa seja
aprovada, dificultará sobremaneira o sucesso do PL. Atualmente, os novos
partidos não têm mais tempo de televisão nem fundo partidário relativos
aos parlamentares que neles desembarcam. Tempo de televisão e fundo
partidário, só depois de disputarem e vencerem uma primeira eleição
dentro de um novo partido. Assim, no curto prazo, a esperança de tais
deputados seria de fato a incorporação. Uma incorporação, ou mesmo
fusão, depois de cinco anos, é um grande desincentivo para que
parlamentares que hoje detêm mandato migrem para um novo partido.
Não
bastassem essas más notícias, ganha corpo em alguns segmentos da
sociedade e da política a ideia de que seria possível tirar Dilma do
governo por meios legais, pelo processo do impeachment. Vários políticos
do PSDB falam nisso abertamente, um renomado jurista veio a público
defender a visão de que já há fundamento legal para isso, uma
manifestação nacional foi convocada com a finalidade de criar pressão
popular nessa direção. Enfim, uma ideia que até pouco tempo atrás era
somente uma peça de ficção acaba de entrar nos cenários possíveis
elaborados por empresas e órgãos que as representam. É bem verdade que
se mistura-se muito desejo com um pouco de realidade.
Estudos
acadêmicos bem formulados atestam que tanto o impeachment quanto a
renúncia, outro caminho legal para que um presidente deixe de exercer o
mandato antes de seu término regulamentar, ocorrem somente quando quatro
condições estão presentes: adoção de política econômica que resulte na
perda do poder de compra da população e consequente redução da aprovação
presidencial, escândalos ou denúncias de corrupção que atinjam a figura
do presidente, minoria parlamentar e povo nas ruas pedindo a saída do
chefe de governo. Quem viveu ou estudou o período saberá que essas
quatro condições estiveram presentes no caso de Fernando Collor. O mesmo
vale para Raúl Alfonsín e Fernando de La Rúa quando presidiram a
Argentina. E também para Siles Zuazo quando presidiu a Bolívia. Fora de
nosso continente, mas em um país emergente, o mais famoso caso no qual
essas quatro condições estiveram presentes foi o de Boris Yeltsin na
Rússia pós-comunista.
Dito isso, vê-se que hoje são mínimas as
chances de que Dilma sofra o impeachment. Mas o problema é outro: a
possibilidade permanentemente colocada tende a enfraquecer o governo. É
tudo que os deputados querem. Nada melhor para a Câmara e para o Senado
do que um governo fraco. Quanto mais fraco ele for, mais se consegue
dele.
É possível que a "mãe de todas as derrotas" não tenha sido
a vitória de Cunha para a presidência da Câmara, mas o fato de o
governo não ter entrado em campo em 2015 no que diz respeito às
negociações entre Poder Executivo e Legislativo. Trata-se de um apagão
político. A metáfora com o 7 a 1 do Brasil e Alemanha é perfeita. A
diferença é que uma partida de futebol é imensamente mais curta que um
mandato presidencial. Recuperar-se de um apagão político é muito mais
factível do que de um apagão futebolístico.
O governo federal
concentra, no Brasil, a maior parte dos recursos públicos, os cargos
mais relevantes e as principais decisões. É formidável o poder em suas
mãos. Mas isso não é tudo. É preciso saber utilizá-lo. É preciso que os
aliados do governo sejam bem tratados. Sabemos que os seres humanos,
todos, gostam de carinho. E os políticos também são humanos. Os recursos
na alçada do governo federal precisam ser compartilhados com os
aliados, assim como várias moedas de troca da política precisam ser
utilizadas.
Dilma, ao escolher Joaquim Levy para o Ministério da
Fazenda, acabou por se reinventar. A Dilma do segundo mandato é
inteiramente diferente, na política econômica, da Dilma do primeiro
mandato. A resistência à reinvenção da presidente vem somente de setores
conservadores da esquerda. Conservadores em um sentido muito
específico, aqueles grupos, líderes e pensadores da esquerda que são
inteiramente incapazes de mudar. Conservadores não mudam.
Se Dilma foi capaz de se reinventar na economia, é possível que também consiga fazê-lo na política.
Alberto
Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A
Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida
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