ZERO HORA 22/03/2015
O médico britânico Richard Smith gerou polêmica,
recentemente, ao afirmar que o câncer é a melhor forma de morrer. Aos que já
perderam alguém para essa doença infeliz, a pergunta que fica no ar é: como
assim? Dr. Smith explica que, entre a morte súbita, a falência múltipla de
órgãos, a demência ou um câncer, este último estaria em vantagem por dar ao
paciente a oportunidade de se despedir dos seus afetos e prazeres, de refletir
sobre a vida, de visitar certos locais pela última vez e de se preparar para a
partida conforme suas crenças.
A polêmica se acirrou mais ainda
quando ele disse que os investimentos para pesquisar a cura do câncer deveriam,
ao menos em parte, ser direcionados a estudos sobre as doenças da mente.
A primeira vez que enxerguei o
câncer com olhos menos dramáticos foi ao ler o livro Por um Fio, do dr. Dráuzio
Varella, em que ele relata sua comovente experiência como oncologista. Agora,
ao assistir ao filme Para Sempre Alice (que achei meio fraco, diga-se),
reforcei a ideia de que o câncer dispõe mesmo de alguns benefícios nessa
competição macabra.
A atriz Julianne Moore ganhou o
Oscar de melhor atriz ao interpretar uma mulher de 50 anos que sofre do mal de
Alzheimer. Ela perde palavras, não reconhece feições, esquece com quem estava
conversando, e sobre o quê. Menos mal que ainda consegue produzir flashbacks,
lembrar a infância e acontecimentos remotos. Porém, nos casos em que a memória
vai inteirinha para o brejo, de que adiantou ter vivido?
Não faz sentido atravessar tantos
conflitos e amores, ter cometido tantos erros e acertos e não poder, lá
adiante, contabilizá-los. No inventário de uma vida, vale o que se fez e o que
se sentiu. Se tudo for esquecido, esvaziam-se nossos 80 anos, nossos 90 ou 100.
Qualquer longevidade passará a valer um segundo.
Espero um dia olhar para fotos
antigas e me reconhecer no sentido mais amplo, recordar o que eu vivia naquele
momento do clique, dizer “parece que foi ontem” sem sofrimento. Quero lembrar
sabores, sorrisos, gestos, enfim, os flashes que iluminam a estrada atrás de
nós. Quero inclusive lembrar os arrependimentos e as dores, que vistos de longe
parecerão bem menores – e essenciais. Quero rir muito de mim, me recordando de
trás pra frente.
Porque, se não for assim, nossa
vida terá valido para os outros, os que nos lembram, mas não terá valido para
nós mesmos. Seremos uns desmemoriados sem alicerces, vagando num presente
ilusório, desaparecendo a cada minuto que passa.
Se temos que morrer um dia (que
jeito), que seja abraçados a nossas recordações. A integridade de uma vida está
em seu reconhecimento, mesmo que, junto às boas lembranças, sejamos obrigados a
reconhecer também a proximidade do fim. É o preço. Pior é morrer alienado, sem
poder avaliar, através da memória, se valeu ou não a pena.
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