Não é fascinante estar vivo numa época em que a educação torna possível uma riqueza de formações que nunca antes houve?
Em abril de 2011, as jornalistas Maria Cristina Fernandes, Denise Arakaki e Célia Franco me levaram para almoçar e me convidaram a escrever uma coluna semanal no Valor. Estes quatro anos, não deixei de contribuir uma semana sequer. Completei quase duzentos artigos nesta página, praticamente todos sobre a política brasileira. Esta é a última coluna, e digo isto com tristeza, porque foi uma experiência extraordinária: discutir nossa política sem fanatismo ou radicalismo, movido pela convicção de que o país tem agendas que demandam o diálogo, a cooperação, o empenho. Deixo a página para assumir, no dia 6 de abril, o Ministério da Educação, a convite da presidenta Dilma Rousseff. Agradeço ao jornal e aos jornalistas com quem tive contato.
Como afirmei várias vezes, aqui e na revista “Interesse Nacional”, o Brasil teve êxito em três sucessivas agendas democráticas. Chegamos à quarta. Começaram todas como projeto de uma parcela minoritária da sociedade, enfrentaram obstáculos, descrença e até mesmo repressão e mortes, para depois se tornarem parte de um patrimônio de que o Estado, a sociedade, a nação já não querem abrir mão.
A primeira foi a da democratização. Nunca tivemos uma democracia de verdade antes de 1985. Mesmo o período de ensaio democrático entre 1945 e 1964 foi turbulento, com aves de rapina ameaçando a tenra planta da liberdade. Contra a ditadura, muitos lutaram – entre eles os três presidentes mais recentes: FHC com a palavra, Lula na organização sindical, Dilma na resistência. Será por acaso que elegemos esses três combatentes da liberdade?
Na educação nem o céu é o limite
Todos eles se bateram para criar esta democracia, que é melhor do que pode parecer. O maior sinal de seu êxito está no avanço da qualidade de vida. No fim da ditadura, eram 85% os municípios brasileiros com IDH “muito ruim”. Hoje, são menos de 1%. Sem a democracia política, não teria havido esse avanço social. Foi com ela que a maioria de pobres pôde se organizar para fazer valer seus direitos.
A segunda agenda foi a vitória sobre a inflação. O mesmo cenário: décadas de corrosão da moeda, planos tentando extingui-la, finalmente, uma moeda que hoje perde menos valor em um ano do que então perdia em três dias. Restauram-se a confiança no outro e no futuro. Se o PMDB capitaneou a luta pela democracia, o PSDB assumiu a bandeira do Plano Real, que hoje pertence a todos.
A inclusão social em larga escala, como política irreversível do Estado brasileiro, foi e é a terceira agenda. É a mais difícil. Levar dezenas de milhões de brasileiros do baixo para o meio da pirâmide social, em poucos anos, é uma façanha quase sem paralelo no mundo. Falta concluí-la. Cada grupo remanescente é mais difícil de incluir. Mas é uma dívida moral que o País tem – e que o PT levantou como tema ético, desde sua fundação em 1981. No século XIX, o Brasil tinha a escravidão. Ela era nossa mancha ética, que corrompia a sociedade inteira, sobretudo os não escravos, que se beneficiavam dessa infâmia. Hoje, nossa chaga ética é a miséria – algo que não precisa, não pode, mais existir.
Se a ditadura durou duas décadas, se a inflação perdurou por tempo parecido, a exclusão beira os quinhentos anos. Começa a ser enfrentada em 1580, com os quilombos. Cinco séculos de opressão, quatro de resistência. Não venceremos esta chaga em um ano, mas derrotá-la é a prioridade ética do País.
Desde maio de 2013, com as manifestações em favor do passe livre, uma nova agenda se definiu, que eu chamo de quarta – a da qualidade dos serviços públicos. Eles melhoraram mais do que se pensa, com forte investimento em gestão. Mas a paciência da sociedade diminuiu. Daí a exigência, justificada, de educação, saúde, segurança e transportes públicos de qualidade. Daí, também, um descontentamento com bases reais, mesmo que na sua expressão uns se voltem contra o alvo errado. O Brasil tem que melhorar esses serviços. A dificuldade em consegui-lo é a má notícia. A boa notícia é que só nos falta isso – mais a inclusão social remanescente – para sermos uma democracia digna desse nome.
Sabemos hoje onde tem que se dar a ação do Estado e dos demais atores sociais e políticos. A disputa política obviamente considera diferentes rotas para chegar lá. Mas todos conhecem os indicadores. Todos sabem muito do que é preciso fazer, desde as boas práticas na gestão até os investimentos necessários, quer em material, quer em formação e remuneração de recursos humanos.
Não é fácil. Por isso o avanço educacional, que a presidenta Dilma elege como fundamento para os novos avanços sociais ao priorizar a Pátria Educadora, precisa da união de todos pela educação. O ano será difícil, devido ao orçamento. Mas não vamos pensar na educação só como o árduo e o complicado. A educação abre o mundo do saber. Conhecer é uma paixão. Por que chamamos as crianças de curiosas? Porque elas perguntam, sem parar, “por quê?”, que em latim se diz “cur”. Curioso é quem interroga por quê. Há coisa mais bela do que a curiosidade que faz os olhos dos pequenos brilharem de alegria quando aprendem algo novo? Por isso, temos de perguntar por que esta alegria depois acaba. O prazer e a festa de conhecer têm que durar a vida inteira.
Estas tarefas podem parecer complicadas, mas prefiro dizê-las complexas. O que é complexo é rico. A educação pode abrir para tantas formações, que nem o céu é o limite. Educar não é só instruir, é formar para a vida. É construir uma personalidade. É preparar eticamente. É tornar este mundo, vasto e cheio de perspectivas, um ativo de primeira grandeza. É mostrar que os problemas que traz a vida moderna são, na verdade, inúmeras soluções. Mesmo que ainda não saibamos para quê! Vejam o Facebook. É uma invenção que podia nunca ter surgido. É diferente do carro e do avião, que atendem demandas preexistentes – locomover-se depressa, voar. Não havia a demanda de comunidades virtuais antes da primeira rede social. Aí ela surge, e o que faremos com ela? Estamos descobrindo. Não é fascinante estar vivo numa época em que tudo isso é possível?
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
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