No aniversário de
lançamento de Alguma poesia, primeiro livro de Carlos Drummond de
Andrade, conheça a crítica à estreia do poeta publicada na capa do
Estado de Minas, a primeira sobre um livro que se tornaria clássico
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 01/05/2015Estado de Minas, 1º de maio de 1930 |
‘‘A pareceu ontem o livro de Carlos de Drummond de Andrade.” Com esse título, a capa do Estado de Minas noticiou, 85 anos atrás, o lançamento do livro de estreia de um autor de 27 anos que viria a se tornar o maior nome da poesia brasileira.
A crítica do jornal saudou a chegada de Alguma poesia e exaltou suas qualidades (leia ao lado). E fez isso antes até do diário em que o próprio Drummond trabalhava à época, como observa o escritor José Maria Cançado, no trecho sobre a recepção do volume, contido na biografia Os sapatos de Orfeu: “Houve até fenômeno também típico da imprensa cultural, a compulsão do furo, com o Estado de Minas dando a notícia do livro no dia seguinte à sua publicação, furando o próprio jornal em que Drummond trabalhava, o Minas Gerais”.
No momento da estreia, a crítica esteve longe de ser unânime. Mas, “ao longo dos anos, Alguma poesia foi sendo reavaliado e ganhando importância até se tornar um clássico”, pontua o poeta Eucanaã Ferraz. Ele é o autor de Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema, editado pelo Instituto Moreira Salles, no qual esquadrinha a recepção crítica ao mais famoso poema da obra com que Drummond estreou.
Sobre No meio do caminho, Drummond afirmou no texto Autobiografia para uma revista: “Sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando o meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”.
Alguns dos 49 poemas do livro começaram a ser escritos em 1923 e chegaram a ser publicados anteriormente, em jornais e semanários como a Revista de Antropofagia. Além de No meio do caminho, Alguma poesia tem outros poemas que já nasceram clássicos, como Poema de sete faces (Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida!), Quadrilha (João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém) e Sentimental (Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho).
O poeta mineiro, que vivia em Belo Horizonte quando escreveu e lançou seu primeiro livro, titubeou antes de colocar no mercado a obra e pensou em batizá-la de Minha terra tem palmeiras.
“Ele levou muito tempo para fazer Alguma poesia e chegou a entrar em crise. Num dado momento, cogitou botar fogo no volume. O Mário de Andrade, seu amigo, a quem o livro é dedicado, foi quem o impediu, dizendo que Drummond não tinha o direito de destruir aquele projeto, porque os poemas já não lhe pertenciam, pois ele já os havia mostrado a várias pessoas”, conta Eucanaã Ferraz.
Drummond é severo com seu livro de estreia na já citada Autobiografia para uma revista. “Alguma poesia traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo”, afirma ele.
Escrita no calor da hora, a crítica do Estado de Minas enxergou outros aspectos na obra, editada com 500 exemplares sob o selo imaginário Edições Pindorama, de Belo Horizonte, criado por Eduardo Frieiro.
“Alguma poesia é uma surpresa agradável que talvez reanime os nossos intelectuais. No livro, diga-se de passagem, a emoção, por mais profunda, não se descontrola em derramamentos líricos. Podendo viver, portanto, sem excessos – clara e forte, como nasceu. Na verdade, é essa, inatamente, a mais humana das feições poéticas.”
A rosa do povo
Outra efeméride drummondiana celebrada em 2015 são os 70 anos do livro A rosa do povo, escrito durante a 2ª Guerra Mundial, publicado em 1945. É a mais extensa obra do autor, sendo composta por 55 poemas, dentre os quais A flor e a náusea, Áporo, Caso do vestido e Procura da poesia. É também considerada a obra em que o lirismo de Drummond se manifesta de forma mais intensa.
O poeta e a cidade
Nos 14 anos em que Drummond viveu em BH,
a capital mineira assistiu a uma inflexão na literatura, tendo à frente
o poeta, que aqui se tornou amigo do modernista Mário de Andrade
Mariana Peixoto
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que lançou Alguma poesia, seu primeiro livro, há 85 anos |
“Sua opinião me interessa mais do que a de qualquer outro, e você sabe que já estou acostumado à sua franqueza rude. A sensação que experimento, ao ver esse livro concluído, é de alívio. Sim senhor! Que coisinha mais difícil de parir.”
Ao longo de 21 anos de amizade, Carlos Drummond e Mário de Andrade pouco se encontraram. Mas a distância não os impediu de manter relacionamento estreito, traduzido nas 161 cartas que trocaram no período.
A que abre este texto foi escrita por Drummond em abril de 1930. Ele havia acabado de publicar Alguma poesia, que dedicou a Mário. Na época, havia seis anos que os dois tinham se conhecido pessoalmente.
A vinda dos modernistas a Belo Horizonte, em abril de 1924, foi um marco não só para Drummond, mas para a própria cidade. Era ele o mais entusiasmado com a visita de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, na chamada viagem de descoberta do Brasil, iniciada logo após o carnaval no Rio.
“Tive notícias do grupo na Rua da Bahia por Carlos Drummond, que estava convocando visitantes para ir ver os paulistas no Grande Hotel”, relembra Pedro Nava em Beira-Mar. Drummond, Nava, Martins de Almeida e Emílio Moura, basicamente a turma que se reunia no Café Estrela, se postaram no prédio do Maletta para conhecer os paulistas.
Foi ali, entre as ruas da Bahia e Paraopeba (hoje Avenida Augusto de Lima) que se iniciou uma amizade que só terminaria em 1945, com a morte de Mário.
Drummond viveu em BH apenas 14 anos. Mas foram anos definitivos. Com a família, chegou à capital mineira com 18 anos. Foi aqui que se formou a intelectualidade literária dos primeiros anos da nova capital. Junto a Milton Campos, Abgar Renault, Emílio Moura, Pedro Nava e Aníbal Machado, Drummond frequentou a Livraria Alves, o Bar do Ponto e o Café Estrela.
Foi também aqui que se graduou em farmácia; que se casou com Dolores; que teve seus dois filhos, Carlos Flávio e Maria Julieta. Antes de estrear na literatura com Alguma poesia, já era conhecido no meio jornalístico da cidade.
Berço do modernismo mineiro, o Diário de Minas recebeu Drummond primeiramente como colaborador. Em 1926, tornou-se redator-chefe. O poeta não estava sozinho, teve como colegas Emílio Moura e João Alphonsus. Eles podiam fazer no campo literário o que quisessem no periódico de quatro páginas, desde que seguissem a linha política do jornal, pertencente ao Partido Republicano Mineiro (PRM).
PSEUDÔNIMOS Drummond ainda atuou como colaborador do Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde. Escrevia sempre com um pseudônimo, geralmente nomes comuns, que poderiam pertencer a qualquer um. Foi Manoel Fernandes da Rocha no Diário de Minas; Antônio Crispim no Minas Gerais.
Foi ainda como um homem comum que viveu situações bastante curiosas, ainda mais levando-se em consideração a imagem circunspecta que manteve por boa parte da vida. Antes de se casar, frequentava o chamado Salão Vivacqua, no casarão hoje fechado na esquina das ruas Gonçalves Dias e Sergipe.
Pertencente a família capixaba que aqui chegou nos anos 1920, era palco de saraus mensais. Amigo de Achilles, o terceiro dos 15 irmãos Vivacqua (entre eles a polêmica Luz del Fuego), Drummond protagonizou com Pedro Nava uma história que deu o que falar na época. No porão da casa, onde ficava a lavanderia, a dupla ateou fogo em jornais. O objetivo era ver as Vivacqua saírem correndo de camisola.
A residência em Belo Horizonte termina em 1934, quando Drummond se mudou definitivamente para o Rio de Janeiro. Voltaria várias vezes para visitar a mãe, Julieta Augusta, que vivia no Hospital São Lucas.
Mas a passagem pela cidade ficou definitiva na poesia com certa amargura quando, na segunda metade da década de 1970, Drummond publicou Triste horizonte. Saudoso da cidade de meio século antes, ele se mostrou implacável com as mudanças. “Não quero mais, não quero ver-te, meu triste horizonte e destroçado amor.”
Foto de Drummond na época do lançamento de seu primeiro livro |
TRECHO
“Eu conhecia a Rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um ar de importância que irritava as outras ruas da cidade. Um dia, parece que a Rua da Bahia teve um desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela com um respeito meio irônico e meio triste. Como quem olha para Ouro Preto.”
Carlos Drummond de Andrade, sob o pseudônimo de Antônio Crispim, em texto publicado em 23 de abril de 1930 no Minas Gerais, diário oficial do estado.
• Drummond em BH
» 1920 – Transfere-se com toda a família de Itabira para Belo Horizonte
» 1921 – Torna-se amigo de Milton Campos, Abgar Renault, Emílio Moura, Pedro Nava e Aníbal Machado, frequentadores da Livraria Alves e do Café Estrela
» 1923 – Ingressa na Escola de Odontologia e Farmácia
» 1924 – Conhece Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, todos de passagem pela capital mineira
» 1925 – Casa-se com Dolores Dutra de Morais. Com Martins de Almeida, Emílio Moura e Gregoriano Canedo funda A Revista, publicação modernista que dura três edições. Gradua-se em farmácia
» 1926 – Depois de um curto período de volta a Itabira, onde deu aulas de geografia e português no Ginásio Sul-Americano, retorna a BH como redator do Diário de Minas. Rapidamente, torna-se redator-chefe
» 1927 – Nasce seu primeiro filho, Carlos Flávio, que só vive por meia hora
» 1928 – Publica na Revista de Antropofagia, de São Paulo, o poema ‘‘No meio do caminho’’, um escândalo literário. Nasce sua filha Maria Julieta
» 1929 – Deixa o Diário de Minas para trabalhar no Minas Gerais, órgão oficial do estado
» 1930 – Publica Alguma poesia, com 500 exemplares
» 1933 – Trabalha como redator de A Tribuna. Acompanha Gustavo Capanema quando este é nomeado interventor federal em Minas Gerais
» 1934 – Volta a ser redator dos jornais Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde. A convite de Gustavo Capanema, ministro da educação e Saúde Pública, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde se torna seu chefe de gabinete. Publica o livro Brejo das almas
PEDRA SOBRE PEDRA
Escritores comentam o impacto que
sentiram diante de Alguma poesia. Levei um choque. Que poesia é
essa, afirma Ferreira Gullar, cuja reação inicial ao primeiro
livro de Drummond foi negativa
Ana Clara Brant
"Alguma poesia é um livro importantíssimo. A partir desses poemas é que fui procurar entender do que se tratava. Que poesia era essa, que uma nova maneira de fazer a poesia tinha surgido" - Ferreira Gullar, poeta |
Várias gerações de escritores e poetas foram influenciadas por Alguma poesia (1930), o livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade. Ocupante da cadeira de nº 37 da Academia Brasileira de Letras desde o ano passado, Ferreira Gullar, de 84 anos, conta que teve reação de espanto em seu primeiro contato com o livro.
“Quando li o Drummond, por volta de 1947, levei um choque com aquela maneira de expressar, porque a concepção de poesia que eu tinha era uma concepção parnasiana, um pouco romântica. Foi um impacto! E num primeiro momento minha reação foi negativa, de achar o que é isso? Que poesia é essa?. ‘Tem uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tem uma pedra’”, afirma.
Foi ali que o autor de Poema sujo percebeu que a poesia havia mudado e que o seu próprio modo de escrever também mudaria. “Alguma poesia é um livro importantíssimo. A partir desses poemas é que fui procurar entender do que se tratava. Que poesia era essa, que uma nova maneira de fazer a poesia tinha surgido. Mais tarde, voltei a ler Drummond com outra visão. Realmente, se trata de um poeta excepcional, de grande qualidade e com o qual aprendi muito.”
Já o poeta e escritor mineiro Affonso Romano de Sant’anna, de 78, estava no colégio, em Juiz de Fora, quando tomou conhecimento da poesia de Drummond, de quem mais tarde se tornou amigo. Nunca se esqueceu de Poema de sete faces, que aliás, abre Alguma poesia (Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra disse:/ Vai, Carlos! ser gauche na vida.)
"O modelo para a interpretação da obra drummondiana está no primeiro verso desse poema. Em minha tese 'Drummond, um gauche no tempo', analiso o conceito de gauche ao longo de sua obra literária" - Affonso Romano de Sant'anna, escritor |
TESE “Percebi que a raiz, o modelo para a interpretação da obra drummondiana está no primeiro verso desse poema. Tanto é que em minha tese de doutorado – “Drummond, um gauche no tempo” – faço uma análise do conceito de gauche ao longo de sua obra literária”, aponta.
Em 1957, Romano de Sant’anna aproveitou suas férias do trabalho no extinto Banco do Comércio Varejista e foi até o Arquivo Público Mineiro pesquisar o início da vida literária de Drummond no Diário de Minas. Lá, encontrou curiosidades sobre a geração que despontava. O escritor chegou a mandar para o poeta itabirano uma cópia do artigo que Lincoln de Sousa escrevera sobre a estreia de Drummond, considerando-o já “diferente dos demais”.
Entre as coisas que também descobriu estava o jantar em homenagem ao poeta, por ocasião do lançamento de Alguma poesia. “Pena que não tenho comigo a notícia, mas lembro-me de que eram 35 pessoas. O discurso de saudação foi de Milton Campos. E depois falou o poeta como que glosando o tema que aparece no primeiro poema do primeiro livro. Drummond dizia que tinha recebido a visita de um anjo, um anjo gauche, que forneceu conselhos para o resto da vida... Lembrava ele que, aos 14 anos, pertencia ao Grêmio Dramático e Literário Arthur Azevedo e sua fala foi pautada sobre os conselhos que o anjo lhe dera. Foi uma ‘tertúlia mastigatória’ como dizia o texto”, recorda.
O compositor e cronista Fernando Brant, de 68, é outro que foi bastante influenciado pelos versos do “homem por trás dos óculos e do bigode”.
"Foi diferente de toda poesia que eu lera antes. Eu me apaixonei, fiquei deslumbrado. Li a antologia de poemas dele e daí passei a ler Bandeira, Cabral, Fernando Pessoa, Lorca. Foi um farol em minha vida"- Fernando Brant, compositor e poeta |
A primeira vez que teve contato com o livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade foi aos 19 anos, quando estudava no Colégio Estadual, em Belo Horizonte. “Foi diferente de toda poesia que eu lera antes. Eu me apaixonei, fiquei deslumbrado. Li primeiro a antologia, a seleção de poemas dele, e daí eu passei a ler Bandeira, Cabral, Fernando Pessoa, Lorca. Foi um farol em minha vida”, diz.
Brant cita o Poema de sete faces como o seu favorito em Alguma poesia. “Foi a revelação de um gênio. Daí para a frente, ele e sua poesia foram até quase o infinito.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário