sábado, 20 de outubro de 2012

Estado de graça


Estado de graça

Biografia, coletânea de textos inéditos e homenagens celebram os 120 anos de Graciliano Ramos
Folhapress
O escritor Graciliano Ramos
O escritor Graciliano Ramos


MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

Graciliano Ramos, fosse ainda vivo, teria motivos de sobra para ficar acanhado nos próximos meses.
Sertanejo de alma desconfiada, o escritor alagoano era avesso à autopromoção e tinha por costume depreciar a própria obra.
Mas, a partir da próxima semana, duas efemérides colocarão o autor de "Vidas Secas" no centro das atenções.
Ele faria 120 anos no dia 27. Em 20 de março de 2013, sua morte completa 60 anos.
Iniciando as celebrações, chegam às livrarias uma nova edição da biografia "O Velho Graça", de Dênis de Moraes, e "Garranchos", coletânea de textos inéditos em livro organizada por Thiago Mio Salla.
A Record, que edita a obra do autor, também vai promover seminários sobre ele. Em 2013, novos eventos estão programados (veja abaixo).
Os apreciadores da obra do escritor bem sabem que os festejos são mais do que justos. Graciliano, talvez, pudesse achá-los excessivos para um "literato medíocre", como se referia a si próprio.
"Mas isso era tudo da boca para fora, ele tinha completa consciência do valor da própria obra", esclarece o biógrafo Dênis de Moraes.
Elucidar mitos que cercam Graciliano foi a motivação do professor de estudos culturais e mídias da UFF ao publicar "O Velho Graça" há 20 anos, por ocasião do centenário do autor.
O título narra com detalhes saborosos o processo de criação, os embates políticos, as dificuldades financeiras e a vida familiar do escritor.
A nova edição preserva, nas contas do professor, 90% do texto original. O restante é ocupado por três acréscimos que, acredita, ajudam a delinear o perfil do artista.
O primeiro deles traz trechos de cinco das raras entrevistas que o autor concedeu.
Em uma delas, na qual o jornalista Homero Senna praticamente laçou o fugidio escritor durante uma caminhada pelo Rio, Graciliano só soltou a língua depois da segunda dose de cachaça.
Os outros dois acréscimos abordam a conturbada relação do escritor com a ditadura de Getúlio Vargas. Em 1936, Graciliano foi vítima de um "arrastão" promovido pelo governo para prender pessoas associadas ao comunismo. Permaneceu encarcerado por dez meses, mesmo sem que houvesse acusação formal contra ele.
Moraes relata que Graciliano e Vargas se encontraram uma única vez, durante um passeio noturno, meses depois de o escritor sair da cadeia. "Boa-noite", cumprimentou Vargas. Graciliano prosseguiu sem nada dizer.
"Passou em silêncio por seu algoz. Foi uma demostração do estilo graciliano: contido, mas firme e implacável", conta o biógrafo.
NOVAS FACETAS
Outro tópico resgata a história da carta que escreveu a Vargas, mas nunca enviou, em agosto de 1938.
No texto, Graciliano fazia um relato bastante irônico de sua passagem pela prisão e tratava o presidente como um colega de profissão -na época, Vargas lançava um livro com seus discursos.
"Ficou a imagem de que fosse um homem pessimista, intratável. Mas ele tinha uma fina ironia, era um homem terno, romântico", diz Moraes.
É também múltiplo o Graça -como era chamado pelos amigos- que salta das páginas de "Garranchos".
O pesquisador Thiago Mio Salla reuniu em livro 81 textos inéditos escritos entre 1910 e 1950. Além de crônicas, críticas e discursos, há um conto, "O Ladrão" (1915), e o primeiro ato da peça "Ideias Novas" (1942), que nunca seria concluída.
Agrupados em ordem cronológica, os textos flagram a trajetória intelectual de Graciliano e as questões políticas em que esteve envolvido.
Colaborando com publicações do Estado Novo, por questões financeiras, ou do Partido Comunista, por ideologia, sempre preservou, ainda que a duras penas, sua independência artística.
"As diretrizes do PCB para a literatura eram muito restritivas. Alguns textos, ainda que de forma velada, deixam evidentes as tensões com o partido", conta Salla.
Outra curiosidade são os textos de juventude, nos anos 1920, que descortinam um Graciliano galhofeiro como poucos vezes se verá depois.
No jornal "O Índio", em Palmeira dos Índios (AL), ele comentava, em tom zombeteiro, muitos dos problemas da cidade, já antecipando sua atuação como prefeito.
Nos dois anos que passou administrando Palmeira, notabilizou-se pelo rigor nos gastos públicos e ganhou fama pela qualidade literária dos relatórios de sua gestão.
"Por qualquer ângulo que se analise, seja obra ou vida pública, é difícil não admirar Graciliano", avalia Moraes.
Mais um elogio que deixaria o modesto escritor mais do que encabulado.

RAIO-X - GRACILIANO RAMOS

VIDA
Nasce em 27/10 /1892 em Quebrangulo, em Alagoas. Morre de câncer do pulmão, no Rio, em 20/3/1953

POLÍTICA
Em 1928 torna-se prefeito de Palmeira dos Índios (AL). Os rigorosos relatórios de prestação de contas de sua gestão ficariam famosos pela qualidade literária

PRINCIPAIS LIVROS
"Caetés" (1933), "São Bernardo" (1934), "Angústia" (1936), "Vidas Secas" (1938), "Infância" (1945), "Memórias do Cárcere" (1953)

PRISÃO
Em 1936 é detido em Maceió durante "arrastão" promovido pelo governo Vargas para prender pessoas associadas ao comunismo. Fica encarcerado por dez meses no Estado do Rio

COMUNISMO
Filia-se ao PCB em 1945. Em 1952 visita a União Soviética


CRÍTICA ANTOLOGIA

Trabalho minucioso faz jus à importância do autor alagoano

Numa época de banalização, ele continua a ser um exemplo extraordinário de homem de cultura

WANDER MELO MIRANDA

ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira impressão da leitura dos textos de Graciliano Ramos ora reunidos em livro confirma a coerência de sua variada atividade como escritor de crônicas, ensaios e discursos.
Em conjunto, articulam-se como um amplo painel da primeira metade do século 20, composto por uma sensibilidade muito especial, capaz de unir compromisso político e fazer literário, sem cair em soluções fáceis ou armadilhas panfletárias.
Desde as contribuições para jornal nos anos de 1910 até os discursos como militante comunista a partir de 1945, o que esses textos revelam é uma incontida paixão pelo real, submetido com força de persuasão ao rigor da forma literária.
Com a mesma ironia investe contra os políticos de província e os literatos de plantão, reclamando de uns e outros maior atenção para com a realidade circundante: a distribuição de luz elétrica em Palmeira dos Índios, a possibilidade de utilização do álcool como combustível, o voto das mulheres, a necessidade de expressão popular ou a afirmação dos negros no romance de Jorge Amado.
ROMANCE DE 30
O elogio que faz ao então principiante Guimarães Rosa, cuja primeira versão de "Sagarana" examina num concurso literário, é elucidativo da posição assumida.
Entusiasma-se com o autor mineiro porque nele é "tudo real, nacional e bárbaro".
Vale destacar a reflexão que Graciliano empreende sobre a literatura, por condensar as preocupações norteadoras de sua a tarefa como intelectual e artista.
Insiste na importância dos romancistas de 30, por deslocarem o centro geográfico e simbólico do poder literário, trazendo o sertão e a periferia das cidades à cena do texto e da então capital federal do país.
Bate-se contra a introspecção dos romancistas "católicos" com a mesma força com que se opõe ao descritivismo documental.
"Por muito realistas que sejamos, não temos a pretensão de apanhar a realidade pura. Dela sabemos o que os nossos nervos transmitem, mas como a experiência alheia não nos desmente, apossamo-nos de uma pequenina verdade relativa, verdade contingente e humana."
Essa parece ser a verdade do intelectual Graciliano Ramos, premido entre o jogo de classes e o engajamento político, no limite estreito de sua relação com o partido ou na relação conflituosa entre seus pares na Associação Brasileira de Escritores (ABDE), sem falar na experiência carcerária que sofreu e nos seus desdobramentos.
Em todos os momentos, reafirma a necessária profissionalização do escritor, como no discurso que faz na célula Theodore Dreiser do PCB. "Essa certeza de que o escritor é um profissional é que precisamos fortalecer em torno de nós."
Numa época de banalização da literatura, Graciliano Ramos continua a ser um exemplo extraordinário de homem de cultura.
O trabalho minucioso do organizador Thiago Mio Salla faz jus à importância do escritor, ao recuperar referências essenciais para melhor compreensão de sua trajetória luminosa.

WANDER MELO MIRANDA, professor de teoria da literatura na UFMG, é autor de "Folha Explica Graciliano Ramos" (PubliFolha).

GARRANCHOS

AVALIAÇÃO ótimo



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