terça-feira, 16 de outubro de 2012


Quando é justo sacrificar um animal?
Conheça as novas regras da eutanásia de bichos e as críticas das entidades de proteção
Eduardo Knapp/Folhapress
A veterinária Miriam com seu Mingau, que escapou de ser sacrificado; à frente, Radar, seu paciente
A veterinária Miriam com seu Mingau, que escapou de ser sacrificado; à frente, Radar, seu paciente
JULIANA CUNHA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No dicionário dos homens, eutanásia é aquele ato generoso de proporcionar morte sem dor para quem sofre de uma doença incurável. No mundo animal, a palavra ganha sentido mais elástico: é estendida para casos em que o dono do bicho doente não pode pagar o tratamento.
Esse é o ponto mais polêmico entre as novas regras definidas pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária. A entidade revisou sua normatização sobre eutanásia e emitiu uma nova resolução, que vem sendo criticada por entidades de proteção.
O documento inclui novos métodos para o sacrifício e retira da lista procedimentos de risco como o choque elétrico sem anestesia prévia.
Até aí, tudo bem. O problema é que o veterinário fica autorizado a matar animais produtivos doentes e cujo tratamento represente custos incompatíveis com a atividade ou com os recursos do proprietário. Trocando em miúdos: donos de animais de fazenda enfermos podem optar pela morte mesmo que ela possa ser evitada com cuidado médico.
"A nova regra veio para regularizar a situação de trabalhadores rurais que não podem gastar o valor de cinco vacas para tratar um único animal com a perna quebrada, visto que não possuem recursos", diz Marcelo Weinstein Teixeira, da Comissão de Ética, Bioética e Bem-Estar Animal do Conselho.
Para a empresária e protetora de gatos Eunice Lima, 42, a nova regra é desumana. "O fazendeiro tem que colocar em sua planilha de custos que os bichos também adoecem e precisam de tratamento. Não existe isso de matar só porque é caro cuidar", diz.
"O conselho não atentou para o fato de que a eutanásia deve ser praticada em benefício do animal, não de seu proprietário", diz Vanice Orlandi, presidente da Uipa (União Internacional Protetora dos Animais). Segundo ela, que é advogada, o texto da nova resolução não condiz com a legislação que protege os animais, abrindo brecha para o sacrifício de "pets" por motivo financeiro.
"A resolução autoriza o sacrifício quando o tratamento tiver custos incompatíveis com a atividade que o animal desempenha ou com os recursos do dono. Cães e gatos não estão excluídos, uma vez que a resolução dispõe sobre a eutanásia de animais, sem fazer distinção entre os que são destinados ao abate e à companhia doméstica", afima.
Segundo a entidade dos veterinários, quem tem bichos de estimação não pode recorrer à eutanásia só porque o tratamento é caro. "Quem não pode pagar deve buscar os hospitais universitários, os poucos hospitais veterinários públicos ou as ONGs", diz Benedito Fortes de Arruda, presidente do Conselho Federal de Medicina Veterinária.
SARNA E CONJUNTIVITE
Mas Orlandi, da Uipa, critica ainda a autorização para sacrificar animais que constituírem ameaça à saúde pública. "Sarna pode ser considerada ameaça, até conjuntivite é ameaça", afirma. Na visão dela, o texto deveria deixar claro que a eutanásia só é aceitável quando o bicho tem doença incurável.
"A nova resolução é um consenso entre os veterinários. Ninguém está falando em matar animais saudáveis, a regra vale apenas para os doentes que representam alto custo. Tratar uma vaca não é como cuidar de um gato dentro de casa", diz Fortes.
Para Rosângela Ribeiro, veterinária e gerente de programas da WSPA (World Society for the Protection of Animals), outra falha da resolução é autorizar que pessoas sem diploma pratiquem eutanásia desde que assistidas por profissional da área.
"Esse é um procedimento delicado que pode gerar dor."
Teixeira rebate explicando o propósito da nova regra: "Em casos de epidemia, quando é necessário sacrificar um rebanho inteiro, o veterinário pode receber ajuda de pessoas treinadas desde que ele se responsabilize".
No ano que vem, o Conselho Federal de Medicina Veterinária deve publicar um guia de métodos e boas práticas feito com o Ministério da Ciência e Tecnologia para orientar os profissionais sobre as técnicas de eutanásia. Segundo Teixeira, o método mais seguro, hoje, é a injeção de um anestésico potente.
É justamente com injeção letal que é feita a eutanásia no Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo. O órgão informa que sacrificou 912 cães e 103 gatos no primeiro semestre. "São animais removidos da rua, que já chegam ao centro sem condições de serem tratados", afirma Telma Rocha, subgerente de Vigilância e Controle de Animais Domésticos do órgão.
DECISÃO TRAUMÁTICA
Sacrificar animal doméstico é uma decisão traumática. Muita gente desiste de ter bichos depois da experiência.
Em fevereiro de 2008, o gato Calvin, de seis anos, estava com 70% de sua função renal comprometida. Fazia xixi pela casa e emagrecia a olhos vistos, quando a dona, a advogada Camila Sesana, 38, decidiu sacrificá-lo.
"Nunca vou esquecer o suspirinho que ele deu quando o anestésico entrou. Foi um dos dias mais pesados da minha vida", diz. "Mesmo sem hipótese de melhora, foi atordoante me ver na posição de definir o fim da vida dele."
Aos dez anos, a cocker spaniel Bruna ficou cega. Este ano, aos 15, foi operada de uma inflamação no útero. "Dois meses após a cirurgia ela enfraqueceu e não levantava para nada", conta a engenheira ambiental Paula Ferreira, 24.
Um dia, Bruna desmaiou no banho e foi levada ao veterinário: a inflamação no útero se espalhou. Nova operação foi desaconselhada por conta da idade da cadela.
"Conversamos na família e decidimos que o melhor era deixá-la descansar", diz Paula. Hoje, seus pais discutem se terão ou não outro bicho.
Aos 15 anos, a engenheria civil Ana Carolina Paulino, 30, ganhou um bichinho de 1,90 m, o cavalo Dakar, criado na chácara onde ela morava, no Tocantins.
Aos 17 anos, Ana levou Dakar para uma cavalgada. Caíram num buraco tampado pelo mato e Dakar feriu uma vértebra lombar. O cavalo chegou a andar até o caminhão que iria levá-lo de volta à chácara e foi examinado por um veterinário. Ao chegar, tropeçou na saída, na rampa do caminhão. A vértebra que estava fissurada se quebrou.
"Não foi possível fazer nada. Aplicamos anti-inflamatórios e analgésicos, mas a dor dele era visível", diz Ana Paula. Os pais e o veterinário decidiram sacrificar o bicho. Já ela não aceitava a ideia.
"Eles marcaram a data, mas, no dia, não deixei. Fizeram a eutanásia quando eu saí para prestar vestibular." Ana se mudou para cursar a faculdade e conta que nunca mais conseguiu voltar à chácara ou andar a cavalo.
Por ano, 4 milhões de cães e gatos sofrem eutanásia nos EUA
40% das casas americanas têm pelo menos 1 cão de estimação
FONTES: ASPCA (SOCIEDADE AMERICANA DE PREVENÇÃO À CRUELDADE CONTRA ANIMAIS); APPA (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DA INDÚSTRIA DE PRODUTOS PARA ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO)
912 cães e 103 gatos foram sacrificados no Centro de Controle de Zoonoses da cidade de São Paulo durante o primeiro semestre de 2012
FONTE: TELMA ROCHA, SUBGERENTE DE VIGILÂNCIA E CONTROLE DE ANIMAIS DOMÉSTICOS DO CENTRO DE CONTROLE DE ZOONOSES DE SÃO PAULO
Nos EUA, há 84,7 milhões de gatos e 78,2 milhões de cães
O custo médio para criar um pet nos EUA é U$ 700 por ano (R$ 1.424)
Fontes: ASPCA (sociedade americana de prevenção à crueldade contra animais); APPA (associação americana da indústria de produtos para animais de estimação)

INJEÇÃO LETAL
Como é feita a eutanásia
Quem está com um animal doente e acha que ele precisa ser sacrificado pode recorrer a um veterinário particular ou ao Centro de Controle de Zoonoses
No Centro de Zoonoses, o procedimento custa R$ 19,30 para cães e R$ 17,50 para gatos
O animal deve passar por uma avaliação clínica que ateste a presença de uma doença incurável e que traga sofrimento para ele ou ameaça à saúde dos donos
O Centro de Zoonoses não aceita que a avaliação médica seja feita por um veterinário externo
É feita uma sedação com tranquilizante seguida de anestesia geral. Se houver necessidade, pode ser aplicada uma medicação para interrupção dos batimentos cardíacos
Sacrificar animais sem orientação do veterinário ou sem anestesia é crime mesmo que fique provado que o bicho estava doente
Fontes: Telma Rocha, subgerente de Vigilância e Controle de Animais Domésticos do Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo e Marcelo Weinstein Teixeira, da Comissão de Ética, Bioética e Bem-Estar Animal do Conselho Federal de Medicina Veterinária

DEPOIMENTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Eu estava atendendo um cão na clínica onde trabalho quando me apareceu uma criadora com um filhote ferido. Criadora não é bem o termo, era uma leiga que resolveu ganhar uns trocados em cima da cadela 'lhasa apso' de dez meses que tinha.
Uma cadela dessa idade ainda é adolescente, não deveria procriar. Mas procriou. Quando veio a ninhada, a mãe ficou perdida e mordeu a patinha do filhote junto com a placenta. A criadora achou que o filhote ficaria manco, defeituoso para o propósito dela, que era vendê-lo. Chegou pedindo uma eutanásia. Que absurdo! Ela não queria nem saber qual era o problema, o nível da sequela. Disse que não tinha dinheiro, mas não tinha interesse naquela vida.
Oferecemos um tratamento gratuito, mas nem assim ela quis. Daria trabalho. Terminei ficando com o filhote. Hoje é o meu Mingau. Fez duas cirurgias, tem três anos, arrasta um pouco a patinha mordida e é um amor.
Ainda vemos casos de pessoas que abandonam cachorros no "pet shop". Há donos que pedem por eutanásias injustas só porque o cachorro está doente e dando trabalho. Tem gente que acha que veterinário é obrigado a cuidar de graça de qualquer animal.
Mesmo assim, sou otimista. Tenho 15 anos de carreira e esses casos acontecem cada vez menos. Aos poucos, as pessoas estão tomando responsabilidade pelos animais que criam."
Miriam Caramico, 36, veterinária


DEPOIMENTO
'Isso de não querer sofrer por causa de bicho não funciona'
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Pipoca tinha a maior energia do mundo e virou um zumbi. Aos 17 anos, teve um problema grave de coluna.
A doença piorou repentinamente: ele já não conseguia erguer as patas traseiras. Andava se arrastando. Parecia que tinha caído uma pecinha do esqueleto que sustentava as patas. Fazia cara de dor, chorava baixinho.
Com remédios e analgésicos, em cinco dias voltou a andar. Ficou feliz. Era como se o cachorro da gente tivesse voltado. Mas as patas voltaram a cair 20 dias depois.
Aí virou história de teimosia. A veterinária passou mais remédios, ele não reagiu. Continuamos o tratamento por oito semanas.
Quando vi que não tinha jeito, perguntei quais eram as opções. Ele poderia andar numa daquelas cadeirinhas de roda que a gente vê alguns cachorros usando na rua ou ser sacrificado. Ela recomendava a segunda opção. Pipoca estava idoso, os músculos iriam atrofiar na cadeira.
Demoramos para decidir. Minha filha ficou inconsolável. Por um tempo pensei que não pegaria outro bicho, mas há dois anos minha filha trouxe a Tequila da rua, eu aceitei. Pensei que não era justo deixar a cadelinha na rua só para não sofrer depois.
Essa história de não querer sofrer não funciona. Nunca funcionou com gente, imagina se funcionaria com bicho."
R$ 410 é o custo médio para tratar um cachorro com a pata quebrada. O valor chega a R$ 1.500 caso ele precise ser operado
R$ 300 é o preço de um tratamento de sarna
R$ 2.000 é o valor médio que os donos precisam desembolçar para tratar um câncer
Fernanda Bernardo, 42, dona de casa que tem sete gatos e um cachorro


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