Hollywood e moral
"O Voo" e "O Lado Bom da Vida" iluminam outro dos paradoxos hollywoodianos, no campo dos costumes
Digo isso porque Hollywood não é uma corporação monolítica, e sim a indústria que lança dezenas de filmes por ano, para diversos nichos de público, e até por lógica comercial precisa lidar com as ideias e os valores de cada época -tanto de maneira ufanista quanto desconfiada.
Um exemplo moderno: difícil haver história sobre políticos, detetives, jornalistas e promotores em que a chefia não seja desmascarada, revelando a estrutura corrompida em governos, polícia, imprensa e justiça. O tema do indivíduo em luta contra a opressão coletiva, tão velho e americano, é realmente a favor do sistema representado por essas instituições? E como uma cultura imperialista, sempre acusada de estimular o conformismo mundo afora, tem como base justamente o pé atrás em relação à autoridade?
Dois filmes em cartaz iluminam outro dos paradoxos hollywoodianos, desta vez no campo dos costumes. O primeiro é "O Lado Bom da Vida", de David O. Russell, que trata das idas e vindas de um casal com transtornos psiquiátricos (Bradley Cooper e a ótima Jennifer Lawrence). O segundo é "O Voo", de Robert Zemeckis, sobre um piloto alcoólatra (o também ótimo Denzel Washington) que vira herói ao salvar vidas num desastre aéreo.
Depois de assistir a ambos, fica a pergunta: o que é ser a favor do "status quo" quando se conta uma história sobre conduta privada? O padrão atual em comédias românticas, caso de "O Lado Bom", é o do sujeito contido, entediado pelo conforto matrimonial e profissional, que se apaixona por mulher instável, viaja para país exótico ou se matricula em curso de dança para, aí sim, descobrir seu verdadeiro eu.
No polo oposto, o de filmes como "O Voo", é inevitável que o farrapo humano destruído por roleta, garrafa, seringa e vídeos acabe confessando que precisa de ajuda, numa catarse de lágrimas que aponta para a salvação na existência regrada, "normal".
Ocorre que é difícil julgar as intenções de uma narrativa. Mostrar uma situação não significa concordar com ela. Mesmo que o desfecho aponte claramente para um lado, a forma como se chegou até ele -por causa de ambientação, dramaturgia, carisma dos atores- pode indicar o contrário.
Assim, em "O Voo", há mais lamento pelos males do alcoolismo ou celebração indireta dos excessos, na lógica romântica (e sessentista) que os identifica com inteligência, criatividade ou resposta à hipocrisia de uma sociedade cheia de normas, tudo ao som de "Gimme Shelter"?
Já em "O Lado Bom", o sentido é o da aceitação de diferenças, no qual simpatizamos com os desajustados, ou falta o requisito básico para a empatia -o conhecimento realista do que é o drama dos distúrbios mentais, tratados por Russell com uma leveza algo turística?
Nesse ponto sempre ambíguo de interpretação, a crítica pode enxergar o que quer. Prefiro pensar que um filme tem autonomia: guardadas as óbvias exceções, inclusive a do "cinema de tese", sua primeira tarefa é seguir a lógica do enredo e dos personagens. Mesmo que trate de moral em algum nível, como faz qualquer descrição de atos humanos, a trama muitas vezes pode passar ao largo desse debate.
É o caso de "O Voo" e "O Lado Bom", em que possíveis conclusões na área são só um detalhe. No primeiro, melhor prestar atenção no virtuosismo do acidente recriado, em seus desdobramentos afetivos e institucionais, na galeria de tipos (o traficante, a viciada) que gravita em torno de Denzel Washington. No segundo, é a direção -de atores, em especial- que faz vibrar um roteiro irregular, em que cenas surpreendentes são melhores que o todo previsível.
Se um filme não pudesse ser visto assim, nunca teríamos chance de gostar ou concordar com o que antes parecia errado. Ou seja, uma história seria boa ou ruim à medida que confirmasse ou não nossas certezas -ideológicas, estéticas, morais. É uma concepção estreita de arte. E sinal de conservadorismo, agora no pior sentido da palavra.
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