Mariana Peixoto
Estado de Minas: 26/08/2013
O pianista e compositor Herbie Hancock mostrou por que é um mito do jazz contemporâneo em apresentação emocionante |
Paraty – Uma garrafa de cerveja arremessada por um bebum na porta da Catedral da Sé, em Olinda, na quarta-feira de cinzas de 2003. Tal cena incomodou tanto a produtora cultural Lu Araújo – paulista radicada no Rio de Janeiro, filha de paraibano com pernambucana –, que acabou culminando na criação de um evento com foco na música instrumental. Um ano mais tarde, a mesma igreja foi palco de um histórico concerto de Nelson Freire (800 pessoas sentadas e 1,4 mil do lado de fora para conseguir lugar) que abriu a Mostra da Música Independente de Olinda (Mimo). Uma década depois, agora transformado em Movimento Mimo, fez sua estreia no fim de semana em Paraty. Com dimensão muito maior do que poderia se supor 10 anos atrás, chega nesta quinta-feira a Ouro Preto (para sua segunda edição em Minas Gerais) e na semana seguinte a Olinda, para a edição comemorativa.
Estreia com excelência, diga-se de passagem, sobre Paraty. A cereja do bolo veio logo na partida, com Herbie Hancock em noite absolutamente perfeita, na falta de uma palavra melhor para definir a apresentação de sexta-feira. Noite enluarada, Praça da Matriz apinhada, som cristalino, tudo convergiu para que a apresentação do genial jazzista fosse impecável. Acompanhado de trio – o baterista norte- americano Vinnie Colaiuta (fez história com Frank Zappa), o percussionista indiano Zakir Hussain e o baixista beninense Lionel Loueke –, Herbie fez uma viagem por sua própria trajetória, tanto no teclado quanto ao piano.
O antigo parceiro de Miles Davis protagonizou longas improvisações com sua banda, ora em clima mais intimista, ora em momentos mais funkeados. Utilizou inclusive o vocoder (instrumento que sintetiza a voz, deixando-a robótica), que marcou sua fase entre o final dos anos 1970 e início dos 1980. Pegou o microfone e falou que o efeito havia sido tão banalizado que o tinha deixado de lado, voltando somente agora a reutilizá-lo. A aproximação do jazzista com o hip hop veio no final da apresentação, quando scratches anunciaram uma de suas composições mais conhecidas, Rockit (1983). Seu maior clássico, Cantaloupe Island (1964) foi citado várias vezes ao longo de digressões instrumentais.
Duduki e nohkan
O desafio do Mimo, ao longo dos dias, é conseguir manter o nível da abertura. Em Paraty conseguiu, principalmente pela diversidade das atrações. Caso do alemão Stephan Micus, que está pela primeira vez no país. Músico de formação nada convencional e com 20 álbuns lançados, Micus é a perfeita tradução do multi-instrumentista. Em seu currículo são contados pelo menos 100, muitos ancestrais. Micus toca instrumentos não da forma como são conhecidos em sua cultura de origem, mas em suas próprias composições.
Na Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, sob um silêncio respeitoso a despeito da lotação, interpretou músicas utilizando duduki (oboé armeno) e nohkan (flauta japonesa utilizada no teatro nô), entre outros. Ele encontra e estuda os instrumentos em seus próprios países. “Para entender uma música fora de sua própria cultura, você tem que viver aquele país, aprender sua filosofia, religião, arquitetura”, disse. Micus voltou, por exemplo, há pouco mais de uma semana de viagem à África. Em Botswana, viajou por 14 quilômetros numa picape em dunas de areia até chegar a uma pequena comunidade para encontrar uma kalimba. “Toda vez que tocar esse instrumento, a história de como o consegui estará com ele.”
Já da Jordânia veio Rum Tareq Al Nasser, que comanda uma pequena orquestra de quase 20 instrumentistas. Também estreante no país, levou no sábado, para a Praça da Matriz, um repertório que busca revitalizar a música árabe, utilizando elementos do jazz, blues e reggae. Com muita percussão e cordas, conseguiu, sem palavras, comunicação total com a plateia, que pediu, por meio de palmas, que ele voltasse para um inesperado (e emocionado) bis. Nasser está no país desde o dia 20 ensaiando com jovens músicos da Orquestra de Barra Mansa, que o acompanham no naipe de cordas.
Bandolins
Também neófitos no país, os belgas do quarteto MANdolinMAN estão fazendo aqui sua prova de fogo. Tocar bossa nova (têm um álbum dedicado ao gênero) ao som de bandolim. “No violão você tem seis cordas, então pode tocar seis notas. Só que o bandolim tem quatro cordas duplas, ou seja, temos que deixar duas notas de fora. Isso não é fácil”, assume o fundador do grupo, Andries Boone. À exceção de Hancock, que no Mimo só tocou em Paraty, os outros músicos se apresentam em Ouro Preto.
E, uma vez terminada a edição 2013 do festival, o Mimo não vai esperar mais um ano para voltar à pauta. Como Movimento Mimo, abrange ainda um portal, web-rádio, aplicativo. “O festival agora é uma ação do movimento. Fizemos um plano para 10 anos e queremos chegar a 10 cidades”, afirmou Luiz Calainho (ex-executivo da Sony Music, um dos sócios da ArtRio), que se associou este ano ao projeto. Ainda estão previstas ações em grandes cidades, Belo Horizonte entre elas. Olhando para o ponto de partida, Lu Araújo se diz curiosa em saber se aquele carnavalesco bêbado tem noção do que seu ato impensado acabou gerando.
No palco e nas telas
O alemão Stephan Micus toca cerca de 100 instrumentos de várias regiões do mundo, imprimindo sempre sua personalidade musical |
Mas o que levou Ney a Paraty foi Olho nu, documentário de Joel Pizzini sobre sua vida e trajetória artística. O longa, que estreou no Festival de Brasília de 2012, só teve uma nova exibição pública agora, com novo corte. “Tinha umas imagens ruins, o som ruim, fui para São Paulo consertá-los. Não tinha justificativa o filme ter sido apresentado em Brasília com problemas. E ainda achava longo demais. Naquele momento, me perguntaram se iriam levá-lo para outros festivais. ‘Não’, eu disse, ‘só quando estiver todo corrigido’”, afirmou Ney.
Um ano mais tarde, deixou a sessão na noite de sábado, na Casa de Cultura, ovacionado e com muita gente do lado de fora esperando para assistir à sessão extra de Olho nu. Projeto nascido no Canal Brasil, o filme é um documentário pautado na figura de Ney Matogrosso. O artista disponibilizou 300 horas de gravações antigas (depoimentos, shows, programas em diferentes formatos) de seu próprio acervo. Pizzini gravou com ele outras duas centenas de horas. Além de Ney, somente sua mãe gravou depoimento para o filme, que foge do formato convencional. “Desde o começo do projeto tive direito de opinar. Monto meus shows, então tenho noção do espetáculo. Olho esse filme como um espetáculo.”
Olho nu está na programação do Festival Mimo de Cinema, braço audiovisual do evento dedicado a filmes sobre música. Por causa da turnê Atento aos sinais, Ney não poderá estar presente nas sessões em Ouro Preto e Olinda. Já com datas em outros festivais, Olho nu deve chegar ao circuito comercial em março do ano que vem. “Eu não sou da música. Eu sou das artes, tanto que me misturo com teatro, cinema. “É tudo um mesmo princípio que se ramifica”, disse Ney, que deixou a sessão em Paraty acompanhado de fãs. E agora, satisfeito com o novo corte? “Ainda está um pouco longo.”
Mimo
Ouro Preto, de quinta a domingo. Shows, palestras e exibição de filmes. Entre as atrações, Gilberto Gil, Duo Milewski & Fortuna, Stephan Micus, Guillaume Perret & The Electric Epic, Ibrahim Maalouf, MANdolinMAN, Madredeus, Dona Onete, Música Figurata, Rum Tareq Al Nasser, Omar Sosa, Stefano Bollani & Hamilton de Holanda. Programação completa no portal www.mimo.art.br. Entrada franca.
A repórter viajou a convite do Mimo
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