Valor Econômico - 23/09/2013
Reservar dois dias por ano para quem quiser se manifestar nas avenidas e praças seria uma medida inteligente
Um prefeito que tenha imaginação bem poderia entender que junho de
2013 deu uma grande lição aos governantes, e adotar uma medida
inteligente: abrir, dois dias por ano, o espaço público para grandes
manifestações políticas. Com data marcada, mas organizadas por entidades
independentes ou, mesmo, não organizadas, só com algumas regras básicas
de civilidade. Seria uma forma de dar vazão, propriamente política, a
tudo o que é protesto ou projeto. Seria uma forma de aprendermos a
traduzir em linguagem política nossos descontentamentos ou anseios.
Seria uma forma de ocupar o espaço público, geralmente utilitário, como
festa. Seria uma forma de aprendermos a fazer política como um espaço de
prazer, de alegria - repito: de festa.
Porque este foi um dos lados das recentes manifestações. Em meio a
dias de violência de manifestantes (numa primeira fase, mas sempre
lembrando que a grande maioria deles foi comedida), um ou mais dias de
violência policial (o fatídico 13 de junho, em São Paulo) e dias de
violência contra prédios e militantes, houve a grande manifestação,
absolutamente pacífica, também na capital paulista, do Largo da Batata. E
outras, em outras cidades. A sensação de quem esteve é exultante. Os
participantes a descrevem em linguagem que me levou a falar em epifania,
em revelação. (Curiosamente, os amigos do Rede Sustentabilidade não
gostam do termo; mas eu o mantenho). Porque se manifestava, a seus cinco
sentidos, uma apropriação das ruas e avenidas pelo cidadão, melhor
ainda, pelo ser humano; lá onde passam carros, ônibus e caminhões, lá
onde há regras rígidas de circulação, lá onde a morte ronda
constantemente sob a forma de atropelamentos e colisões, triunfou
brevemente a lentidão do andar, o prazer do flanar, a alegria do
encontrar.
Foram algumas janelas de vida feliz num mês ou dois que conheceram
momentos de violência inaceitáveis. Para muitas pessoas, esse tipo de
manifestação, que começa com o 1968 francês e irrompe de vez em quando
mundo afora, sem causa determinada ou visível, deixa como único legado a
festa. Pode ser pouco. Eu, pessoalmente, acho que só isso é pouco: quem
bota o mundo de cabeça para baixo não deveria voltar, rápido demais, à
rotina. Um carnaval pode fazer vislumbrar que outra experiência de vida
pode existir. Mas é este momento "happening" que propicia a revelação.
Se muitos apenas se divertem - se alguns até vivem esse dia como uma
balada um pouco diferente - outros podem perceber, aí, que dá para
reivindicar juntos. E isto é uma das coisas de que o Brasil mais
precisa.
Tirar a política da melancolia e da resignação
Porque nosso hábito é o da queixa individual, que nem chega a ser
reclamação. Uma vez, quando um avião que seguia para São Paulo atrasou a
ponto de ficar claro que pousaríamos em Guarulhos e não em Congonhas,
vi uma fila de passageiros se queixar no balcão da companhia, mas sem
unirem as vozes. Vários insultaram os funcionários - e depois, mansos,
embarcaram para o aeroporto indesejado. Poucos anos depois, porém, outra
experiência redimiu a primeira: vi uma moça reunir cinco ou seis dos
passageiros, reclamar delicada mas firmemente com a companhia - e
conseguir de volta a aeronave que estava sendo desviada para outro
destino. A diferença está numa única palavra: organização. Incluí o
depoimento dela, a médica Claudia Coutinho, no programa "A liberdade de
organização", que fiz para a TV Futura.
Pode a organização nascer de uma festa? Pode. É preciso unir
reclamações. Mas é necessário, sobretudo, sabermos que reclamações dão
resultado, desde que feitas em conjunto. Quem se reúne tem mais êxito do
que quem se divide. Nossa sociedade é individualista demais. Saber se
unir é, para nós, prioridade. Nunca venceremos a corrupção enquistada
nos castelos políticos se não desenharmos unidades alternativas a eles.
Agora, organizar em tom de festa é bom. É algo que o Brasil sabe
fazer. Sempre se comenta que o carnaval, nossa festa com mais ares de
bagunça, é na verdade um prodígio de organização. E no futebol, o
esporte mais querido, o esporte que identificamos com a nacionalidade,
os jogos começam na hora certa, sem atraso. Dá para misturar alegria e
organização. Aliás, se pusermos alegria no convívio, no estar-juntos,
teremos maior eficiência, que depende de sermos organizados. E, para
completar, lembremos que os norte-americanos dizem "Let us get
organized", Vamos nos organizar, quando querem dizer: este problema não
pode ser resolvido por pessoas sozinhas, então nos juntaremos para
enfrentá-lo.
Volto ao prefeito com imaginação. Uma festa das reivindicações, em
que grupos grandes e sobretudo pequenos, até mesmo indivíduos, exponham
suas críticas e propostas, ocupando avenidas ou praças da cidade - de
qualquer cidade -, pode ser a ocasião de dar voz aos mil pequenos
descontentamentos que nos acostumamos a calar. Dia a dia, engolimos
frustrações com a baixa qualidade de nossa vida pública, de nossos
serviços públicos. Não falar já é ruim. Não ver saída para problemas
cruciais só agrava uma sorte de melancolia política que é nossa
constante, com raros intervalos de euforia. Nós nos resignamos a muitos
problemas, que achamos não terem como sair da vida pessoal e privada - e
que são deprimentes. Mas eles podem ser enfrentados e até resolvidos,
se soubermos transpô-los para a vida pública e política. É a esperança
que o Brasil precisa construir: sair da passividade que nos isola a
todos, para uma posição ativa que só existirá na cooperação de muitos.
Esta proposta pode parecer ingênua e talvez o seja. Mas indica que
podemos ter alegria numa política decente.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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