Zero Hora - 22/09/2013
Tem quem não consiga enxergá-la de jeito nenhum, o que para mim é o
mesmo que nascer sem um pé ou sem uma orelha. Quem não vê a graça da
coisa, vive com um pedaço faltando. Nada que impeça o sujeito de
acordar, trabalhar, viajar, mas é chato.
A graça da coisa está em quase tudo, só que é preciso ter um olhar
aberto e curioso para percebê-la, pois nem sempre ela fica evidente. Às
vezes, exige leitura de entrelinhas, bom manejo da ironia, benevolência
com o sarcasmo. É onde está a graça da coisa.
Mas, por sorte, ela não costuma ficar escondida. É até bem exibida.
Um filme B, daqueles que é puro lixo, pode se tornar cult se for
assistido sem emburramento por uma plateia a fim de diversão. Um amigo
resolve colocar os pés na cozinha pela primeira vez e o resultado é a
pior massa grudenta da história. Que tal um sarau lá em casa para a
gente cantar as músicas de acampamento dos nossos 16 anos? Sim, ao
violão, todos bem desafinados.
Ela ronda por aí, nas aparentes roubadas que se tornam inesquecíveis por motivar tantas gargalhadas.
O que impede a graça da coisa de circular mais livremente é o
excesso de seriedade que tomou conta do mundo. Esse tal de politicamente
correto, então, é um inimigo declarado da graça. E os que não se
desapegam do próprio ego também. Eles ficam de um lado, se achando, e
ela fica de outro, boquiaberta: qual o sentido de se dar tanta
importância?
A graça da coisa está justamente nas desimportâncias.
Quanto menos obsessão por elogios, por cargos e por poder, mais
livre ficamos para reparar nas pequenas nuances por trás das afetações.
Em tudo na vida há uma centelha de inocência que corrompe nossa rigidez e
permite a entrada de uma alegria descompromissada e renovadora. A graça
da coisa não tem assento reservado em camarote Vip nem lugar no pódio
dos campeões, ela é simplesmente a piada espontânea surgida nos
bastidores.
Há que se zombar da vida maluca que levamos e procurar a graça da
coisa em nossas fracassadas investidas amorosas, nos erros em que nos
viciamos, nas discussões de relação que sempre se repetem, nas
tentativas de aparentarmos sabedoria, nas rugas que tentamos suprimir
puxando a pele com as mãos em frente ao espelho, em nossos defeitos
favoritos, nas reprises das brigas familiares, no nosso saudosismo meio
brega, no nosso vocabulário do tempo do onça. Em tudo há uma graça
infantil, uma consciência comovente das nossas impossibilidades. É só
desempinar o nariz.
A graça da coisa é o título do meu novo livro de crônicas, que
autografarei no próximo sábado, dia 28, das 17h às 19h, na livraria
Saraiva do Shopping Moinhos, em Porto Alegre. Se puder, apareça.
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