Dilma e Obama em São Petersburgo: por que é tão difícil para Obama pedir desculpas? |
A decisão de Dilma Rousseff de adiar a visita de Estado aos EUA é um gesto que recupera parte do terreno que vinha sendo perdido na política externa brasileira. Em matéria de relações internacionais, o Brasil é um país que sempre se orgulhou da qualidade de sua diplomacia, ao mesmo tempo em que se eximia de maior participação da vida internacional, com uma atuação tímida no âmbito dos conflitos de toda natureza. Havia um orgulho em não intervir, em conversar demais, em lustrar nossos diplomatas. Diplomacia, 10; ação de Estado na política externa, zero.
Em outras palavras, o Itamaraty era forte e o presidente assumidamente fraco, como se o assunto não lhe dissesse respeito. Quando a diplomacia é mais importante que a ação presidencial, o resultado é o isolamento do país no que toca às questões mais importantes em termos de segurança e comércio. Os Estados Unidos sempre preferiram o caminho inverso: eles são fracos na diplomacia porque empoderam a política externa exercida pelo presidente. A diplomacia só entra em campo para limpar a sujeira e, mesmo assim, sem deixar a prepotência de lado.
Lula e seu chanceler, Celso Amorim, começaram a mudar essa história. O Brasil passou a falar alto, se apresentou para mediar grandes conflitos, inclusive um dos mais sensíveis do nosso tempo, em relação ao Irã e seu programa nuclear, assumiu a disputa por um lugar no Conselho de Segurança da ONU e nos fóruns que realmente contam no âmbito do comércio internacional. Protagonizou conferências, debateu o aquecimento global, participou com forças de paz no Haiti.
Quando Dilma assumiu, muitos comemoraram o recuo da política externa independente e aberta a novos arranjos geopolíticos, quase sempre de forma regressiva. A escolha do chanceler Antonio Patriota foi uma espécie de recuo ao padrão Itamaraty e, de forma quase escancarada, a certo fascínio pela proximidade com os Estados Unidos e a União Europeia. Entre os resultados dessa postura estão fracassos exemplares, como nas conferências sobre o clima, quando o Brasil perdeu pontos e os países mais ricos mantiveram sua postura arrogante e egoísta em relação a problemas globais. Os países ricos mandaram o recado: vão continuar dilapidando o mundo, patrocinando injustiças, dando pitaco na natureza de outros e se recusando a abrir mão de padrões de consumo suicidas.
Mas o pior ainda estava por vir. O chamado Primeiro Mundo, nas antecâmaras da crise, perdeu a vergonha de passar por cima da liberdade e dos direitos humanos e adotou ações intervencionistas explícitas e tácitas, como a espionagem em escala nunca vista nem mesmo no período da guerra fria.
O recente episódio da espionagem da própria presidente Dilma e o encaminhamento dado pelo governo brasileiro mostraram uma recuperação da linha que marcou a administração anterior. O adiamento da visita aos Estados Unidos, a exigência de esclarecimentos convincentes e a formulação de um programa de recuperação da independência da política externa brasileira merecem ser comemorados. A forma altiva com que a presidente se portou precisa ser compreendida como questão de Estado.
Por isso é preocupante e irresponsável o papel que a oposição vem ensaiando, com candidatos à presidência que deveriam respeitar a soberania nacional, mordendo para depois soprar, dizendo que se trata de postura marcada pelo calendário eleitoral e pelo marketing pessoal da presidente, ainda que a causa seja justa. Há, numa contabilidade absurda, quem diga que não se deve radicalizar a indignação, sob risco de prejuízo para o país. Sem que o Estado brasileiro marque de forma dura sua posição nesse episódio, não podemos sequer falar em país, quanto mais em prejuízo.
Os EUA sabem disso e, numa atitude pouco comum com suas tradições, capricharam na diplomacia e, juntamente com o Itamaraty, estabeleceram uma relação em que os dois países mantêm preservadas suas posições. O Brasil não vai fazer a visita até receber respostas convincentes (que ainda não foram dadas e estão na promessa); os EUA não se sentirão esnobados em razão da divulgação do adiamento em lugar do cancelamento. Mais que palavras, estão em jogo atitudes políticas dos dois lados.
Nem mesmo o charme de Obama foi capaz de tamponar o mal-estar causado. Dilma ficou, com razão, indignada com as ações de espionagem. Como se não bastasse, além da figura da própria presidente, empresas de ponta da nossa economia, como a Petrobras, foram alvo de ações de espionagem americana.
Protagonismo
O cenário das relações entre os EUA e o Brasil, hoje, não é tão desigual como há algumas décadas. O Brasil tem protagonismo na região, é consumidor de alta tecnologia, tem um mercado em crescimento. Até a presença de turistas brasucas com seus dólares é bastante significativa para a economia americana. Que, como se sabe, vem se esforçando para sair da crise e reassumir sua proeminência mundial. Em outras palavras, o Brasil é hoje um país relevante e precisa traduzir essa posição em sua política externa. A diplomacia pode ficar para os momentos de crise.
Não vai demorar para que muitos acusem o governo de estar fechando portas para investimentos estrangeiros e outras barbaridades que sempre soaram como verdade em nosso canhestro sentimento de baixa autoestima. O que se desenha com uma política externa independente e altiva é exatamente o contrário: respeito nos acordos comerciais, igualdade no tratamento de patentes, participação em decisões de âmbito supranacional, presença decisiva no concerto das nações, respeito aos direitos humanos de todos os cidadãos.
O Brasil tem uma história desigual de intercâmbio com os Estados Unidos. Só muito recentemente adotou a política de verdadeira reciprocidade. Os brasileiros sempre foram considerados invasores a vampirizar as oportunidades devidas aos cidadãos americanos. A retirada de um visto foi, por muitos anos, uma maratona de humilhações. As pessoas dormiam na fila e pediam pelo amor de Deus o direito de entrar no país para deixar lá suas economias. Eram tratados sem cortesia, através de um vidro, sujeita a grosserias. A recusa não precisava ser explicada.
Viagens aos parques da Disney e de outras produtoras cinematográficas eram vistas como a realização do sonho de crianças de classe média, que se perdiam em meio a bobagens, guloseimas e consumo inútil. O que os EUA tinham de melhor – em sua diversidade cultural e humana – não era apresentado com o mesmo empenho, já que rende menos e é menos consumível. A grandeza do país sempre fazia par com a pequenez moral de sua indústria cultural e seus ícones de consumo. Os ricos brasileiros passaram a comprar casas em Miami, criando empresas de fachada e levando para lá o dinheiro que ganham por aqui.
A recusa ou adiamento da visita aos Estados Unidos bem que poderia marcar novo patamar nas relações tão boas entre os dois povos. Os EUA nos mostrariam o que têm de melhor e nós prometeríamos nunca mais ir à Disneylândia. Na outra via, faríamos o mesmo, apresentaríamos nossos méritos deixando de lado as mentiras do turismo empacotado e grotescamente sexualizado. Assim, não haveria por que espionar ou querer levar vantagem sobre o outro: a infância moral ficaria para trás e nos trataríamos como adultos. Enquanto houver Mickey Mouse não há salvação.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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