O Aizomê é um restaurante japonês dos Jardins, em São Paulo. Pretende ser um estabelecimento mais parecido com os de Tóquio. Ou seja, mais autêntico. Como neles, não tem salmão, um peixe de rio que, na terra do sushi, é procurado pelos turistas, já que peixe nobre para os locais é o atum.
No Aizomê também não se usa muito shoyu, o molho em que os ocidentais adoram mergulhar o sushi. No Japão, onde sushi de classe é aquele comido com a mão, o shoyu é tratado com a mesma desconfiança que se deve usar no trato com a pimenta. Sushi, aliás, é quase um prato de luxo.
Tirando tudo isso, a sala reservada do Aizomê, onde foi marcado o almoço com o escritor gaúcho Michel Laub tem uma esquisitice bem pouco japonesa, algo impensável, por exemplo, num filme de Yasujiro Ozu (1903-1963), em que as cenas são filmadas com a câmera na altura do chão, para apanhar os personagens de pernas dobradas sobre o tatame. No Aizomê, há um pequeno fosso para deixar os pés imersos no conforto ocidental.
Mas isso é apenas um detalhe diante da variedade de pratos nada convencionais servidos durante a entrevista. Laub é um frequentador do Aizomê desde quando o chef-proprietário, Shin Koike, atendia em outro endereço, oferecendo pratos de arroz coroados com nacos de carne de porco ou boi, à maneira dos restaurantes de Tóquio. O negócio agora une a culinária japonesa a ostras, "magret" de pato, purê de mandioquinha, berinjela à milanesa com toque de azeite trufado, "foie gras" e "tiramisù" para finalizar. Verdadeiro encontro entre culturas gastronômicas do Oriente e do Ocidente - mas sem salmão.
Laub, autor de seis romances, todos editados pela Companhia das Letras, e um volume de contos que considera imaturo, chegou a São Paulo para entrar direto na redação da revista "Bravo!" em 1997. Chegou a diretor de redação da revista, da qual saiu em 2004. "A 'Bravo!' é muito simbólica de uma época", diz. Como tudo relacionado à cultura no Brasil, a revista tentou se ajustar ao mercado e acabou perdendo: foi fechada há poucos meses. Não que isso tenha algo a ver com Laub - há quase dez anos ele vem se transformado num escritor em tempo integral.
Seu último livro, "A Maçã Envenenada", mistura na mesma receita o suicídio do líder do Nirvana, Kurt Cobain, com o genocídio ocorrido em Ruanda no mesmo ano, 1994 - ou quase no mesmo dia -, mais a história pessoal de um narrador às voltas com o Exército e uma namorada de temperamento forte. A trama perpassa e une os temas com a naturalidade e a condução quase cirúrgica, de tão cristalina, que caracteriza os outros livros do autor.
Laub no Aizomê: "Sua prosa tem que capturar o tempo do leitor, perdido entre mil distrações"
Seus livros têm em comum uma narrativa em primeira pessoa e um tema que remete aos clássicos romances de formação, em que um jovem começa a aprender o que é a vida - ou ao menos o que é a vida dentro de um romance. Há sempre uma tragédia no aspecto mais amplo e um desenrolar desse acontecimento no âmbito mais pessoal. Em "Música Anterior" (2001), um juiz é assolado por dois dramas: o de ter condenado um homem pelo suposto abuso de uma criança numa festa e o da mulher que não pode ter filhos. Em "Longe da Água" (2004), dois amigos adolescentes vão surfar e apenas um sobrevive para contar a história. "Diário da Queda" (2011) trata dos efeitos do Holocausto em três gerações, mas recua ao universo adolescente ao narrar a história de uma culpa, a brutalidade cometida contra um colega não judeu numa escola judaica.
Em todos os livros de Laub a memória tem um papel fundamental. No caso do recente "A Maçã Envenenada", a história também possui elementos verdadeiros, embora o escritor invente a parte substancial das lembranças, recurso parecido com o utilizado nas outras obras. Algo assim: Laub de fato serviu o Exército, no CPOR, o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva; viveu um período em Londres; tocou guitarra numa banda e assim por diante. Mas nunca namorou uma garota chamada Valéria nem foi exatamente um fã do Nirvana. "Se os meus livros têm alguma influência de música, é muito mais daquela dos anos 80. O Ian Curtis, jovem suicida do Joy Division, é muito mais interessante para mim do que o Kurt Cobain."
A verdade é que ele já gostava da melancolia do rock dos 80 já aos 12 anos. Aos 21, quando o Nirvana apareceu com sua música energética, Laub já era um ouvinte tarimbado, menos aberto ao lado mais punk da banda de Cobain. "Eu gostava do Jesus and Mary Chain, por exemplo, que veio antes." Sentindo-se impossibilitado de dar voz a um narrador criança, como já fizera em "Diário da Queda", acabou empurrando o tempo para a frente, situando a história nos anos 90.
"Era uma história só sobre o Nirvana, que comecei a escrever antes do 'Diário'", conta. "Mas não funcionava, não achava o tom." Ele acabou entrando no prêmio Petrobras Cultural com a ideia de um livro de contos, entre os quais o núcleo original de "A Maçã" e o conto "Animais", que seria publicado na revista "Granta", com os melhores jovens autores de ficção do Brasil. Ganhou a bolsa, e no meio do processo "Maçã" foi se impondo como o romance que sempre desejara ser. Então o autor quis mudar o gênero e o título do livro, tendo que se haver com as normas do prêmio. Devolveu parte do dinheiro, e acabou ficando com cerca de 30% do total. O resultado é o romance renitente que deve o nome ao trecho de uma letra do
O suicídio, a memória, o papel das tragédias na vida pessoal, a adolescência, temas caros ao autor, tendem a encontrar seus momentos máximos e definitivos, como se fechassem ciclos. "A Maçã Envenenada" finaliza o suicídio como chave mestra da obra de Laub, assim como "Diário da Queda" foi o livro sobre memória que ele quis escrever para encerrar o tema. "Eu quero mudar", afirma Laub, com a mesma calma perfeitamente zen encaixada no pequeno fosso do Aizomê. "É um ciclo de romances que pretendo fechar com um último livro."
Será, afinal, uma trilogia, e esse último romance vai tratar dos anos 2000. Laub não fala a respeito, mas a grande tragédia daquela década foi o atentado às Torres Gêmeas, o que representaria, como tema, um dos grandes desafios do nosso tempo - algo que até os americanos ainda têm dificuldade de encarar. No mesmo pacote entra a obsessão muito moderna pela primeira pessoa. "Depois do próximo, nem eu sei o que vai acontecer. Talvez seja outro tipo de ficção em terceira pessoa. Talvez seja não ficção."
O romance como gênero já vive uma crise adulta. Para Laub, o esgotamento nada tem de aflitivo. "O Coleridge diz que a ficção é uma suspensão voluntária da descrença. A dificuldade é fazer o leitor acreditar naquilo que você está escrevendo. Sua prosa tem que fazer isso, capturar o tempo do leitor, perdido entre mil distrações", observa. "Uma das formas é lidar com os fatores externos ao livro. Entre eles, está o autor. Há quem use o próprio nome. Nunca fiz isso, mas cada um encontra a sua maneira. No meu caso, escrever em primeira pessoa foi muito natural. Nunca pensei no que funcionaria melhor. Só sei narrar desse jeito."
O austríaco de origem holandesa Thomas Bernard (1931-1989) e o sul-africano de origem australiana J.M. Coetzee são nortes da escrita de Laub. Com eles, divide uma espécie de frieza deliberada, nem tão intelectual ou ácida. "O que tem de escritores imitando o Bernard! É muito fácil fazer isso. Quando comecei a escrever, um dos meus primeiros impulsos era ir por aí. No entanto, meus livros não saíram nem ácidos nem cômicos." Os romances de Laub seguem em linha reta, alternando os impulsos da memória e se deixando levar pela fragilidade das lembranças. Sua sintaxe é pura, sem sobressaltos, como se fosse a língua falada numa conversa entre pessoas tímidas. Seus temas é que são pesados. "Eu me considero uma pessoa bem mais leve e com muito mais humor do que em meus livros. Eles saem melancólicos, não tenho como fugir disso." Por isso tudo, depois de seis "autobiografias", é possível prever uma espécie de crise envolvendo a ficção de Laub.
De alguma forma, "Diário da Queda", o mais aclamado dos seus livros, rompeu alguns parâmetros e preparou a possível crise. Só depois de quatro romances, o escritor resolveu encarar as suas origens judaicas. "Diário" trata do tema da identidade como nenhum outro dos seus livros, mas deixa a religião de lado. Ali ele descobriu um jeito de unir a ficção ao ensaio. O romance já está sendo traduzido para 11 línguas, talvez porque, tirando suas evidentes qualidades, o Holocausto, segundo o próprio Laub acredita, seja um gênero, e para editoras que compram livros mesmo sem lê-los é um atrativo de mercado.
Sorte de Laub: no ano que vem ele terá uma vida mais confortável, graças a essas traduções. "Toda grana que vem do livro que você já escreveu parece de graça", brinca. "Se você ganhar um prêmio polpudo, parece até que não trabalhou nada. Mas para chegar aí escrevi cinco livros e ganhei muito pouco. E são dez anos de uma vida." No quesito prêmios, ele é um pouco mais pessimista. "Perco sempre, sou o rei da derrota. Prêmio é uma coisa muito aleatória. Tem que ter um sujeito ali que goste de você." Não que ele já não tenha sido premiado. Laub se refere aos grandes, como o Portugal Telecom e o Zaffari & Bourbon, dos quais foi finalista com "Diário da Queda". Era o livro de Laub, entre todos, que talvez merecesse os principais prêmios do ano.
Mas não há muito o que reclamar. A profissão das palavras chegou a Laub de maneira fortuita, e desde então ele tem vivido de escrever. Foi um dos alunos mais elogiados da clássica oficina do escritor Assis Brasil, ainda em Porto Alegre. Antes mesmo de terminar a faculdade, a mãe, que é brasileira, mas teve uma educação alemã, enviou alguns dos textos do filho para o jornalista Bob Fernandes, então editor da "Carta Capital". Veio o convite para trabalhar em São Paulo, mas Laub recusou. Outro editor, Wagner Carelli, trocou a "Carta" pela "Bravo!" e fez outro convite. Laub aceitou e foi trabalhar com Carelli e Reinaldo Azevedo, entre outros. "Uma escola e tanto", comenta. Para o garoto saído de um lar gaúcho de classe média alta, onde o pai, engenheiro nascido em Berlim, defendia a ética do trabalho e por isso não dava mesada, abriu-se um universo paralelo. "A vinda para São Paulo foi como a de um jogador de futebol que virasse profissional. Teria dinheiro. Passaria a ter uma vida boa."
Tudo isso é passado. Há dois anos e meio Laub trabalha em casa. O jornalismo corresponde a mais ou menos 20% dos seus ganhos. Ele dá aulas em oficinas, faz a maratona de feiras e festas literárias a que todo escritor está acostumado hoje em dia. "Não tenho medo de perder o emprego porque não tenho emprego."
Levado às últimas consequências, o jeito de unir a ficção ao ensaio pode mesmo conduzir Michel Laub à não ficção. Não à toa, ele anda às voltas com um catatau de quase mil páginas, "Longe da Árvore - Pais e Filhos em Busca da Identidade", de Andrew Solomon (Companhia das Letras), o mesmo autor de uma espécie de tratado sobre a depressão moderna, "O Demônio do Meio-Dia" (2001). A questão de gênero anda martelando na sua cabeça. "Você usa um instrumento, a palavra, que não precisa ser voltada só para a ficção. Eu gosto de escrever. E tenho gostado de escrever a minha coluna da 'Folha'. Coisa que eu não esperava - nunca quis ficar dando opinião. Achava até meio ridículo."
A coluna quinzenal da "Folha de S. Paulo" tem recebido respostas imediatas dos leitores, algo muito mais difícil no terreno câmera lenta da literatura. E aí vem uma confissão que seria eloquente e alarmante se não fosse dita em voz baixa pelo escritor: "Nem eu acredito tanto na coisa de sentar e escrever mais um romance. Às vezes, dá vontade de mergulhar num negócio grandioso como esse do 'Longe da Árvore', em que o autor fez mais de 300 entrevistas. A ficção é difícil. Tudo é dúvida. Tem que ter uma necessidade muito grande de fazer, porque o preço é alto."
Tudo isso está mais ou menos impresso em seus livros de ficção, com a liberdade que só um romancista de estilo é capaz de tomar. Um estilo bastante disfarçado nas narrativas pessoais e límpidas de Michel Laub. Tão bem escritas que escondem toda uma relojoaria.
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