Valor Econômico - 25/10/2013
Os jornais têm dado destaque, nas últimas semanas, ao duelo de
opiniões em torno do problema das biografias não autorizadas. De um
lado, celebridades argumentam que a autorização prévia do biografado, ou
de seus herdeiros, é imprescindível para evitar violações à sua
privacidade e à sua reputação, que podem advir de livros
sensacionalistas, que se disponham a veicular informações falsas ou
expor sua intimidade. De outro lado, biógrafos e editoras alegam que
exigir tal autorização como condição para a publicação de biografias
significa aniquilar esse importante gênero literário, de valor histórico
e informativo. Investem, por isso, contra o "direito brasileiro", que,
segundo tem repetido a maior parte da imprensa, "impede atualmente a
publicação de biografias sem autorização prévia do biografado". Daí
derivaria uma urgente necessidade de aprovar o Projeto de Lei nº
393/2011, que dispensa a autorização do biografado para a publicação de
biografias no Brasil.
Em que pese o esforço dos defensores desse projeto de lei, ele não
resolverá, de modo algum, o problema das biografias não autorizadas no
Brasil. O projeto de lei se lima acrescentar um parágrafo ao Código
Civil que terá a seguinte redação: "A mera ausência de autorização não
impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade
biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional
tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse
da coletividade". Em outras palavras, a simples ausência de autorização
do biografado não será suficiente para impedir a publicação de uma
biografia. Ocorre que o direito brasileiro já não proíbe a publicação de
biografias (ou de quaisquer outras obras literárias, históricas ou
jornalísticas) pela simples falta de autorização da pessoa retratada ou
mencionada no texto.
É preciso entender bem o que diz, e como é interpretada, a atual
legislação brasileira nessa matéria. A Constituição de 1988 protege como
direitos fundamentais a honra, a imagem e a privacidade de todas as
pessoas (art. 5º, inciso X) - sem nenhuma ressalva ou atenuação,
registre-se, em relação às chamadas "pessoas públicas". Protege
igualmente a livre expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação - incluindo a atividade dos biógrafos e
editoras -, vedando a censura (art. 5º, IX). Os dois lados da disputa,
portanto, encontram amparo no texto constitucional. Significa dizer que,
à luz da Constituição, nenhuma solução absoluta (carta branca para
biógrafos ou poder de proibição por biografados) pode ser adotada, em
favor nem de um lado nem de outro.
A polêmica jurídica surge porque, ao tratar do tema no seu artigo 20,
o Código Civil de 2002 afirma: "Salvo se autorizadas, ou se necessárias
à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a
divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas,
a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem
a fins comerciais".
Em resumo, para o Código Civil, a autorização da pessoa retratada
afasta, como era de esperar, qualquer possibilidade de reclamação em
juízo. Mas o Código Civil não proíbe toda e qualquer publicação sem
autorização. Para que a publicação não autorizada seja proibida ela
precisaria, segundo a literalidade do artigo 20, atingir "a honra, a boa
fama ou a respeitabilidade" ou se destinar "a fins comerciais".
Interpretando esse artigo, os tribunais brasileiros já vêm
concluindo, há muito tempo, que a simples finalidade comercial da
publicação não justifica a proibição da publicação se ela estiver
amparada em um fim constitucional de informar o público ou de exprimir a
liberdade artística ou intelectual. É por conta desse entendimento
jurisprudencial que os jornais (que têm fins comerciais) não precisam
solicitar autorização de toda e qualquer pessoa que vem mencionada ou
retratada em uma reportagem. Para que a publicação seja proibida - ou
para que gere indenização se já tiver sido veiculada - os tribunais
brasileiros exigem a demonstração de que restou lesada a honra ou a
privacidade do retratado. O mesmo vale para as biografias.
Quando o Poder Judiciário brasileiro proíbe a circulação de uma
biografia não autorizada, não o faz ao simples argumento de que aquela
biografia não foi autorizada pelo biografado. O principal argumento
dessas decisões judiciais é que o biografado - ou seus familiares no
caso das biografias póstumas - foram atingidos em sua honra ou em sua
intimidade. O que significa ser atingido em sua honra ou em sua
intimidade? É isso que se tem discutido detidamente nos países que têm
conduzido discussões sérias e não superficiais sobre o problema das
biografias não autorizadas, discussão que transcende o mundo editorial
para alcançar documentários cinematográficos, programas televisivos e a
própria liberdade de imprensa.
Numerosos parâmetros têm sido propostos mundo afora para essa
delicada avaliação, seja por meio de leis, de precedentes judiciais, de
recomendações de órgãos públicos de proteção da privacidade ou mesmo de
diretivas emitidas por entidades de autorregulamentação, em cuja
composição se combinam representantes do mercado editorial, da indústria
cinematográfica, dos sindicatos de atores, dos sindicatos de escritores
e de outros entes interessados, além da própria sociedade civil.
Em alguns países, por exemplo, não se reconhece violação à
privacidade ou à honra na menção a dados que já constam de registros
públicos (processos judiciais, administrativos etc.), ou já foram
divulgados pelo próprio biografado em ocasiões públicas pretéritas, ou,
ainda, foram legitimamente obtidas em entrevistas com pessoas
identificadas. De outro lado, a transcrição em biografias não
autorizadas de trechos de cartas particulares tem sido, em muitos
países, considerada violação à privacidade, por infração ao sigilo de
correspondência. O mesmo se tem entendido em relação ao uso de dados
constantes de prontuários médicos ou de procedimentos sigilosos, ou
ainda de informações relativas à intimidade sexual do biografado.
Esses parâmetros não reduzem a avaliação das biografias não
autorizadas a uma fórmula matemática, mas ajudam a trazer segurança aos
dois lados em disputa. O Projeto de Lei nº 393/2011, que se tem debatido
com opiniões inflamadas de um lado e de outro, não resolverá o problema
das biografias não autorizadas no Brasil. A proposta erra o alvo, já
que, mesmo se restar aprovada no Congresso, os tribunais continuarão
retirando biografias não autorizadas de circulação ao argumento de que
houve lesão à honra e à privacidade do biografado, avaliação que
continuará a ser puramente subjetiva e guiada não raro pelos valores
individuais do magistrado.
O que deveria estar ganhando destaque nos jornais não é a "guerra" de
opiniões entre celebridades - que já ameaça reduzir um tema tão
importante a chamadas sensacionalistas, que consistem justamente no
grande temor dos biografados e também dos biógrafos -, mas sim os
critérios objetivos para identificar lesão à honra ou à privacidade das
pessoas retratadas em biografias. Urge redirecionar o debate para
identificar, a partir dos valores jurídicos e culturais da sociedade
brasileira, que parâmetros específicos devem ser seguidos nessa disputa,
em que não há espaço para soluções absolutas, já que, a rigor, os dois
lados têm razão.
Anderson Schreiber é professor de direito civil da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
Nenhum comentário:
Postar um comentário