terça-feira, 1 de outubro de 2013

Maria Esther Maciel - Vida da vaqueiro‏

Estado de Minas: 01/10/2013 



 Não faz muito tempo, reli um magnífico relato de Guimarães Rosa, intitulado “Entremeio com o vaqueiro Mariano”, que integra o livro Estas estórias, de 1969. Caracterizado como uma “reportagem poética”, o texto foi escrito após uma viagem de Rosa ao pantanal do Mato Grosso do Sul, em 1952, e conta a história do encontro e da longa conversa que o escritor teve com José Mariano da Silva, um vaqueiro de muita experiência no ofício. Como contou Rosa, o propósito desse encontro/conversa foi conhecer melhor o dia a dia do vaqueiro e “aprender mais sobre a alma dos bois”.

Impressiona o conhecimento que Mariano tem sobre a vida bovina em geral e sobre cada um dos animais que integram sua boiada. Seu saber vem da convivência diária com eles. Mariano sabe os nomes de todos os bois e vacas. Descreve os caprichos e talentos de cada um, como se estivesse falando de amigos muito próximos. E chega a dizer, em certo ponto: “Aqui, o gado é que cria a gente”. Isso porque, para o vaqueiro, a boiada faz parte de uma comunidade em que pessoas e animais mantêm relações de amizade e cumplicidade, com muitas trocas afetivas e conflitos. Algo raro hoje em dia, visto que as comunidades rurais baseadas na troca direta de experiências, afetos e interesses entre seres humanos e não humanos já quase não existem, por causa do processo de industrialização das fazendas brasileiras. Vaqueiros como Mariano se tornam figuras cada vez menos presentes na realidade de nossos campos.

Esse texto de Rosa me veio à memória quando soube, outro dia, que em 24 de setembro foi aprovada no Senado a lei que reconhece oficialmente a profissão de vaqueiro. Confesso que fiquei surpresa com a notícia. Mas minha perplexidade não foi, é claro, motivada pela aprovação da lei, e sim pelo fato de só agora, em pleno século 21, isso acontecer. Não podia imaginar que os vaqueiros (em atividade no Brasil desde os primeiros anos da colonização portuguesa) ficaram por tantos séculos à margem das leis trabalhistas do país. E, para completar, a regulamentação só chega agora, quando o ofício de vaqueiro se encontra quase em vias de extinção. Sabemos que ordenhar vacas tornou-se, de uns tempos para cá, uma atividade mecânica, feita por equipamentos; os animais são transportados em caminhões e mantidos em espaços que, nem de longe, lembram os velhos currais que conhecemos na infância. O aboio – canto dos vaqueiros para dirigir a boiada pelo sertão, lindamente retratado no filme Aboio, da mineira Marília Rocha – já é quase coisa do passado. E dar nomes aos bois virou apenas uma expressão verbal, que não condiz mais com a realidade.

Sem dúvida, para os vaqueiros que ainda existem e resistem no interior de vários estados, a notícia é muito boa. Assim como é para os vaqueiros (ainda podemos chamá-los assim?) que trabalham como empregados das grandes fazendas modernas. Mas pergunto: será que esse reconhecimento tardio do ofício pode reparar, à altura, tantos séculos de injustiça contra os vaqueiros? Algumas pessoas podem dizer: “Antes tarde do que nunca”. O que faz todo sentido. Porém, tendo a concordar com minha amiga Glorinha, que se valendo de uma frase de Rui Barbosa, comentou assim a notícia: “Justiça atrasada não é justiça”. 

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