quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Quando direitos brigam entre si

O Globo - 03/10/2013

DISPUTA Compatibilizar o acesso à informação e a garantia à privacidade é questão polêmica até hoje


Ruído de sirenes, tiros disparados na madrugada, explosões de bombas e judeus obrigados a usar a estrela amarela. Os primeiros horrores da guerra estão descritos, entre recortes de jornais, poesias e listas de temperos culinários, nas mais de 200 páginas do diário que Guimarães Rosa, cônsul adjunto do Brasil em Hamburgo, começou a escrever em 1938, quando servia na cidade portuária alemã. Fundamentais para entender a gênese literária de um dos maiores escritores brasileiros, os "diários de guerra" de Rosa permanecem inéditos há 75 anos. Uma desavença entre herdeiros os impede de chegar aos leitores.

Publicá-los em nome do interesse público, como sonham editores e pesquisadores, ou mantê-los guardados, em respeito ao desejo de parte da família, é um problema que a Constituição de 1988 foi incapaz de resolver. Os diários de Rosa e outras obras artísticas estão no centro da arena onde dois princípios constitucionais, ambos abrigados no Artigo 5e, medem forças há 25 anos. Se a Constituição assegura "a todos o acesso à informação" resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional, também garante que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

Para sair dessa enrascada, evitando que um princípio aniquile o outro, os operadores do Direito — magistrados, promotores e outras autoridades envolvidas no assunto — estão recorrendo a um terceiro princípio, que não aparece em artigo algum da Constituição: o da ponderação. Na queda de braço, vence a controvérsia o lado que demonstrar as bases jurídicas de valor mais elevado. Assim, é legítima a vontade de preservar a intimidade de Rosa, expressa pela família. Porém, é ilegítimo o desejo dos servidores públicos de manter em segredo o valor dos seus salários, já que o seu patrão é a própria sociedade brasileira.

— Princípios não são como regras, nas quais está claro o que pode e o que não pode. Portanto, é comum que entrem em choque. No caso dos salários, nem sequer reconheço que houve choque entre privacidade e informação. Os vencimentos foram definidos em lei. Os parlamentarem decidiram quanto vale aquele trabalho. Não há razão para o segredo — explica o ministro Jorge Hage, chefe da Controladoria Geral da União (CGU).

LEI DAS BIOGRAFIAS EM QUESTÃO

Mas as prateleiras não carecem apenas do diário de Rosa. Na represa do direito à privacidade, flutuam histórias inéditas de Roberto Carlos, Raul Seixas, Cecília Meirelles e outras personalidades, cuja imagem é também protegida pela Lei das Biografias, que dá ao biografado ou a seus herdeiros o poder de vetar um livro sobre sua vida. Duas ofensivas, no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso, tentam agora abrir essas comportas, modificando o caráter restritivo da lei.

— Quando a pessoa é privada, ela tem mais proteção do que uma pessoa pública — explica o desembargador aposentado Luís Gustavo Grandinetti.

Outro round importante, no conflito entre os dois direitos, é travado no âmbito do Código Civil. Sob a alegação de proteger a imagem, autoridades públicas têm recorrido ao Judiciário para barrar reportagens de conteúdo supostamente ofensivo. Foi o caso do presidente de um tribunal de Justiça brasileiro, que obteve liminar proibindo que a imprensa de seu estado divulgasse informações a respeito de uma investigação em andamento sobre a sua conduta.

— A imprensa tem a tendência de tratar os casos de restrição judicial ao direito à informação como se fossem iguais. Mas há diferenças entre eles. No caso, por exemplo, de interceptação telefônica autorizada, a lustiça não pode autorizar que o conteúdo seja publicizado. A lei proíbe. Não se trata de censura prévia — disse Grandinetti.

Artigo 52

Prevê o acesso à informação, resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. E diz que são invioláveis a intimidade, a honra e a vida privada.

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