Seguindo o lúcido raciocínio pode-se dizer que difamações e invasão de privacidade falam dos biógrafos, não dos biografados
O historiador que estuda a ditadura
civil-militar já conhece o debate
que agora ganha maior amplitude
devido à expectativa em relação à
decisão judiciária sobre a ação movida por
editores, questionando a faculdade de os biografados
ou seus herdeiros proibirem biografias.
Para o pesquisador, historiador, jornalista
etc, ter acesso à documentação produzida
pelos órgãos de informação e de repressão,
na qual alguém estivesse citado, era
necessária autorização do mesmo ou da família,
caso já tivesse falecido. As restrições
criaram, assim, graves distorções observadas
sem maiores dificuldades, justamente e sobretudo,
nas biografias, fossem escritas por
historiadores ou jornalistas.
O debate atual, independentemente da época
em que o biografado viveu ou vive, enfrenta aspectos
semelhantes.
Não há como negar que a autorização interfere
na autonomia e na independência de que
o pesquisador precisa para escrever, ainda
mais, um texto biográfico. No acordo estabelecido
entre biografado e biógrafo, estabelecese
uma espécie de dívida que pode comprometer
interpretações que venham na contracorrente
do que o biografado ou sua família
esperam ou desejam ver publicado. O biógrafo
torna-se refém do biografado.
Se assim não for, ele, o biógrafo, parece ter
quebrado a confiança que nele fora depositada,
para não falar do impedimento da publicação
de seu trabalho.
Seja quem for o biografado, é certo que sua vida e
sua obra estarão permeadas por aspectos de todo
tipo, dos mais aos menos nobres, para não entrar
aqui nos casos de personagens tais como ditadores,
genocidas etc. O fato é que há uma enorme dificuldade
de se enfrentar o lado escuro da Lua, os aspectos
pouco edificantes na vida de quem quer que seja,
como se as trajetórias humanas não fossem feitas
também de desacertos, equívocos, misérias.
Assim, para se obter a autorização, não raramente
se fica — ou se pode ficar — refém de
uma relação cujo compromisso nem sempre se
baseia na produção do conhecimento, mas, frequentemente,
na construção e/ou preservação
de determinada memória.
No confronto entre a memória e a história, a
história tem perdido. A memória é seletiva, apaziguadora,
maleável às vontades do presente. A história,
não. Releva o personagem sem retoques, em
sua grandeza e sua pequeneza, e tudo mais que
existe entre os dois extremos. Muitas das biografias
autorizadas são hagiografias e, portanto, nenhum
interesse têm para quem quer conhecer a
história de homens e mulheres cujas trajetórias tiveram
— ou têm — importância em sua época. A
narrativa dessas vidas não pode ser acessível a
uns e não a outros. Ninguém deve se tornar guardião
da memória, dono da história. Nem da própria
história, principalmente quem se colocou no
mundo através da política, da arte, do esporte etc.,
expressando suas ideias e posições, deixando,
portanto, nele seu registro.
É exatamente a possibilidade de narrar a história
de homens e mulheres dignos de biografias,
abordando-os em sua dimensão humana,
em suas contradições e tensões, do tempo e deles
mesmos, a maior homenagem que se lhes
pode fazer. O desrespeito seria deformá-los como
seres perfeitos, mantendo-os desconhecidos
e isolados do mundo no qual atuaram.
No mais, quando ouço o argumento segundo
o qual o biografado se vê vulnerável a difamações
e invasão de privacidade, lembro-me de
Theodor Adorno que disse ser uma ofensa procurar
nos judeus a razão da perseguição dos nazistas.
O problema, defendeu o filósofo alemão,
não estava nos judeus, e sim nos nazistas, nos
perseguidores, e não nos perseguidos. Seguindo
o lúcido raciocínio, pode-se dizer que difamações
e invasão de privacidade falam dos biógrafos,
não dos biografados
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