João Paulo
Estado de Minas: 02/11/2013
Um jantar brasileiro, de Debret: a história que vai além dos grandes fatos e entra nas casas para revelar o modo de ser nacional |
Num país que sempre foi considerado sem memória, a história está em alta. O interesse pelo conhecimento sobre o passado tem deixado a academia para ganhar as ruas. O que é muito bom, mas exige dos profissionais uma atenção especial ao novo público. Além de filmes, peças de teatro e narrativas ficcionais de fundo histórico, os livros de história começam a conquistar mercado e atenção do leitor. Com isso, ao lado dos profissionais da academia, jornalistas, biógrafos e escritores têm mergulhado no tema, com qualidade cada vez mais notável.
Os historiadores, percebendo o interesse, também se prepararam para atender à demanda vinda da sociedade e passaram a ocupar um território novo, com volumes de história narrativa e artigos em revistas e jornais. Além disso, publicações mais populares dedicadas exclusivamente à história – que são comuns em outros países há décadas – começaram a ser editadas no Brasil e vendidas nas bancas. E é esse cenário que recebe o livro História do Brasil para ocupados: os mais importantes historiadores apresentam de um jeito original os episódios decisivos e personagens fascinantes que fizerem o nosso país. A coletânea é organizada por Luciano Figueiredo, professor associado de história da Universidade Federal Fluminense, estudioso da história de Minas Gerais, sobretudo de temas como mulheres, família e revoltas.
O livro reúne artigos de 66 historiadores de várias universidades brasileiras, que escrevem pequenos ensaios sobre os temas de sua especialidade. Os textos são produzidos sempre de olho no leitor comum, interessado e inteligente, mas não especialista, sem jargão técnico ou querelas metodológicas. Não há notas de pé de página nem aparato acadêmico. O esforço para proporcionar uma leitura fácil é perceptível, mas não cede à simplificação. A organização é temática e não cronológica, o que evita certo risco positivista de compreender a história como uma sucessão progressiva de fases em direção ao presente.
Luciano Figueiredo dividiu o livro em seis partes: “Pátria”, que trata dos pecados de origem do país, sobretudo a violência, que marca as primeiras relações com outros povos e civilizações, como tráfico negreiro, as invasões e as bandeiras; “Fé”, que traz trabalhos sobre as cosmogonias e a religiosidade, inclusive em suas manifestações populares e de resistência; “Poder”, que reúne ensaios sobre a ordem econômica e política nacional. Os demais capítulos são “Povo”, com artigos sobre reis, sexualidade e gente comum; “Guerra”, sobre os principais conflitos nacionais e seus personagens; e “Construtores”, série de perfis de presidentes, escravos, artistas e anônimos que ajudaram a dar cara ao que chamamos hoje de Brasil.
O organizador teve a boa ideia de selecionar textos que propõem sempre um olhar diferente, trazendo lições do passado em diálogo com a sensibilidade contemporânea. Pode ser que algum leitor sinta falta de temas mais canônicos, o que se explica pela intenção de renovar o ambiente dos estudos mais convencionais. Os artigos e pequenos ensaios (entre três e 12 páginas) são sempre autônomos, o que permite uma leitura mais fluida, seguindo o interesse do leitor, como uma coleção de revistas antigas. Aliás, todos os textos foram publicados anteriormente em revistas, com destaque para a Nossa História e Revista de História da Biblioteca Nacional, que foram criadas e dirigidas por Luciano Figueiredo.
Só para dar uma ideia dos temas e autores responsáveis pelo conteúdo de História do Brasil para ocupados, podem ser destacados: “O traficante Chachá”, por Alberto da Costa e Silva; “Candomblé para todos”, de João José Reis; “Exércitos de Cristo”, de Ronaldo Vainfas; “Nos porões do Estado Novo”, por José Murilo de Carvalho; “1964; golpe militar ou civil?”, de Daniel Aarão Reis; ‘1968: um ano-chave”, de Lucília de Almeida Neves Delgado; “O indiscreto ‘Demonão’”, de Mary del Priore, “Santo ofício da homofobia”, de Luiz Mott; “Maurício de Nassau”, de Evaldo Cabral de Mello; “A invenção da MPB”, de João Máximo; e “O herói da floresta”, de Kenneth Maxwell, entre dezenas de outros textos.
Livro que pode se tornar porta de entrada para estudos mais aprofundados, História do Brasil para ocupados só teria a ganhar se, ao fim de cada artigo, trouxesse uma sucinta lista de indicações para quem queira ir adiante. Como os trabalhos são também oriundos de revistas que primam pela qualidade da pesquisa iconográfica, seria igualmente interessante trazer algumas reproduções de imagens que dialogassem com a leitura, ainda que isso apontasse para novo projeto, certamente mais caro para o leitor.
Por fim, em meio a tanta celebração da história (sobretudo em meio à polêmica das biografias no Brasil), com a incorporação de jornalistas, cineastas e escritores no segmento, a melhor notícia que História do Brasil para ocupados traz é a disposição dos historiadores profissionais em ir ao encontro do público. Ao se preocupar em escrever de maneira direta e saborosa, sem deixar de lado o rigor mas atentos às curiosidades, eles estão apresentando um convite que tem tudo para dar certo. Em matéria de conhecimento, os dois lados – a academia e a sociedade – só têm a ganhar com o diálogo.
‘‘Temos o direito de saber’’
Como você analisa o grande interesse do público pela história no Brasil, revelado no sucesso de obras de divulgação, filmes e outros produtos culturais que se nutrem do passado?
Ao contrário do que se passou no início do século 20, com a civilização orgulhosa de suas realizações e confiante no futuro, o nascimento do século 21 assiste a uma desconfiança generalizada com o que vem pela frente. A impressão é que o futuro não promete muito: escassez, agressões ao meio ambiente, intolerância, conflitos étnicos e religiosos. Nesses ambientes é natural que o passado vire uma espécie de zona de conforto, uma experiência para onde se olha a fim de encontrar um território de coisas organizadas. Além disso, no Brasil houve nesse mesma temporalidade uma afirmação econômica e social de grupos até então fora do mercado de consumo de bens simbólicos e de conhecimento, item valorizado como capital dessa alargada mobilidade social. Surgiu um mercado de história, uma verdadeira inflação de memória. Isso é gratificante. Mas é preciso, na condição de historiador, distinguir popularização e divulgação científica, ainda que ambas cheguem ao grande público sem distinção muitas vezes. A popularização não envolve a atuação direta do especialista, quando muito como fonte de conteúdo, ao passo que a divulgação científica envolve o “cientista”, ele próprio fazendo a mediação. Considero ambas importantes mas imperioso que os acadêmicos atuem fortemente nesse processo. Inclusive para alertar falsificações grosseiras, interpretações tendenciosas do passado que são um risco à vida democrática.
De que forma o estudo da história contribui para o aprimoramento da cidadania? Como você tem acompanhado o trabalho da Comissão da Verdade?
As leituras do passado são sempre o que trazemos de mais forte. A razão de ser da história é fixar na consciência coletiva referenciais da identidade, considerados como virtudes ou não, que podem nos posicionar para agir no presente. Por isso história é disciplina obrigatória, dentro e fora da escola. O trabalho da Comissão da Verdade é um mergulho em um passado tenebroso, ao abrir uma ferida amarga que, em nossa história recente, se tentou silenciar. A maneira pública e corajosa como isso vem sendo feito, com a convocação de todas as pontas da máquina de repressão, a aproximação franca entre vítimas e algozes, sob a garantia democrática da ordem institucional, é um momento fundamental. Esconder não resolve, simular tampouco; logo, trazer para a cena pública o horror ajudará indivíduos e famílias a superar a violência à qual foram dragados e a consolidar um posicionamento para os que vivem hoje sobre o que nunca mais se quer viver.
Qual a sua opinião sobre a polêmica em torno das biografias não autorizadas?
De certo modo, assim como a Comissão da Verdade, o capricho de artistas em torno do grupo Procure Saber promoveu uma outra forma de revelar a experiência pública com a nossa história. Historiador algum pode estar de acordo com a exigência de se autorizar biografias. A Ana de Holanda, ex-ministra da Cultura, foi certeira: “Sou filha de historiador, não posso estar de acordo”. Paulo César Araújo, surrado pelos advogados do Rei que impediram a publicação de seu livro, acabou divulgando um texto-resposta registrando: “Sou historiador”. A sociedade brasileira vem também nesse processo revelando uma maturidade impressionante em seu compromisso com o valor da história. Reivindica o direito ao passado, não poupa a Justiça lenta, que deixa expostos aqueles que são vítimas da infâmia e da calúnia e denuncia aqueles que querem apenas as benesses da vida de vip. Todos queremos ver as imagens de Manuel Bandeira, ler Guimarães Rosa sem limites. Temos esse direito. Quem trabalha em outra direção será atropelado por esse trem doido. Afinal, Chico Buarque cantava em uma velha música: “A história é um carro alegre que atropela indiferente toda aquele que a negue”.
Qual é o papel da academia nesse cenário de interesse pela história? Como você vê o desafio de dialogar com a sociedade?
Professores e pesquisadores da área das ciências sociais deveriam ocupar papel dos mais relevantes, estimulando, debatendo, produzindo. Mas não é isso que ocorre. Os casos daqueles que atuam são raros. A comunicação pública de história por parte dos historiadores é precária e não faz parte do metier do historiador no Brasil. Ainda é uma convivência estranha. As políticas públicas de popularização também não dão muita bola para as ciências sociais, pois a história da divulgação científica, desde o Correio Braziliense, no início do século 19, privilegia as ciências associadas à produção de riquezas materiais. O diálogo é difícil, pois historiadores são formados para conversar com eles mesmos e lecionarem. O público mais amplo já tem professor na escola. As universidades e centros de pesquisa em nossa área precisavam ser dotadas de núcleos de divulgação, experimentarem projetos, formando junto com jornalistas, educadores e artistas uma geração sensível ao diálogo fora da sala de aula. Estamos também despreparados para lidar com o fato de a história ter se tornado uma commodity. Há aspectos éticos de que os historiadores precisam cuidar, pois ao agirem em um plano cultural mais amplo estão sujeitos a pirataria e a má-fé.
. Organizado por Luciano Figueiredo
. Editora Casa da Palavra, 504 páginas, R$ 49,90
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