João Paulo
Estado de Minas : 02/11/2013
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‘‘Que os biógrafos penem e labutem, não vamos
facilitar demais para eles.” Quando Sigmund Freud escreveu essa
maldição, em 1885, em carta à noiva, ela havia acabado de queimar
correspondência e manuscritos que julgava menores ou indignos de sua
trajetória até aquele momento, preservando apenas os escritos mais
familiares. Freud, que conhecia a alma humana – inclusive a própria –,
sabia que escrever uma biografia era tarefa árdua e fadada a enganos.
Mas, como bom iluminista, não pensou em nenhum momento em atacar sua
importância. Ele mesmo escreveu sobre a vida de seus pacientes, acerca
de passagens da infância de Leonardo da Vinci, sobre a relação de
Dostoiévski com o pai e sobre algumas obsessões de Shakespeare.
Tratava-se sempre de momentos sensíveis das existências de seus
biografados.
Pode-se argumentar que nem todo biógrafo é Freud ou que o que ele fazia era ciência. Além disso, não deve ser esquecido que ele mesmo escreveu sua autobiografia (mais que isso, baseou sua teoria em sua própria existência diurna e sonhada) e que incentivou o discípulo Ernst Jones a produzir algo próximo de uma biografia autorizada, em três grandes volumes. Não foi suficiente: a posteridade foi pródiga em biografias de Freud, que se contam às dezenas – apenas entre as muito boas. Os biógrafos devem ter penado, mas fizeram um bom trabalho, do qual até hoje nos beneficiamos.
No entanto, mesmo com todas as reservas, é bom voltar a Freud e ver que, burguês cioso de sua intimidade, em nenhum momento se julgou defeso do interesse de outros homens, seja em seus momentos públicos ou mesmo em segredos de alma. Tentou dificultar a vida de seus biógrafos queimando documentos, mas não passou por sua cabeça o recurso da censura. Na mesma carta, registra com certo humor que, ao pôr fim aos documentos que julgava chinfrins, estava “quase completando um empreendimento que algumas pessoas ainda não nascidas, mas destinadas ao infortúnio, vão sentir seriamente”. Freud sabia (coisa que Roberto Carlos nem desconfia mergulhado em seu narcisismo primário) que ninguém domina a verdade sobre a própria vida.
Em toda a polêmica sobre as biografias, um tema que tem ficado de fora são as próprias biografias, não o gênero, mas o produto em si, o livro que conta a vida de um personagem real. Por que não ir até as biografias para lhes avaliar os méritos e riscos? O gênero está bem das pernas, tem produzido excelentes trabalhos, informado muitos leitores e aberto portas para outros formatos de estudos, sejam eles históricos, literários ou científicos. As biografias, em sua articulação do geral e do particular, em sua capacidade de desenhar o contexto e mergulhar no indivíduo, são um instrumento privilegiado de acesso ao sujeito e à sociedade. Além disso, a grande tradição das biografias literárias e históricas ganhou muito com a chegada do método jornalístico, com sua obsessão pelo fato e pela apuração exaustiva. Não se pode esquecer também que esse tipo de estudo tem sido por muito tempo um modelo de acesso ao conhecimento por quem não é especialista em algum campo do saber. Quantas vocações científicas foram despertadas pelas biografias de Darwin e Einstein?
Sem esticar ainda mais a falsa diatribe entre direito à liberdade de expressão e direito à intimidade, é bom lembrar apenas um preceito lógico que defende que, em caso de pares aparentemente contraditórios, a solução possível para ambos convivam e sejam exercidos em sua integridade é dar precedência ao que não anula o outro, permitindo que as ações a posteriori corrijam os equívocos de origem. Assim, quando se parte da preservação do direito à intimidade antes do direito à liberdade de expressão, este ficou prejudicado e não poderá ser exercido. No caso inverso, a liberdade de manifestação de pensamento pode até ferir a privacidade, mas esta pode ser retomada em função de correções legais pertinentes.
Assim, há dois caminhos que devem pautar os debates na vida prática: o bom senso que previne os enganos (que só é conquistado na prática, não no silêncio) e os mecanismos de controle e ressarcimento dos erros de fato (que aponta para instrumentos legais e para mecanismos institucionais que tornem a Justiça mais rápida e eficaz, com indenizações mais significativas). Entre duas verdades, deve-se ficar com as duas. A grande questão não é filosófica, mas processual. Isso, é claro, se se trata a questão como um problema ético (em que os dois lados têm razão) e não uma questão de mercado. Se o problema é dinheiro, a questão sai do terreno da ética para adentrar no campo das conveniências. Pelo nível dos contendores – com as exceções notáveis –, até prova em contrário, ainda não chegamos lá.
A equação é simples: uma cultura de biografias gera um mercado mais responsável, editores mais zelosos e biógrafos mais equilibrados. Por outro lado, cria um aparato jurídico mais eficiente, justo e célere. Como em todo setor, a liberdade é instrumento de aprimoramento e as restrições apenas reforçam a regressão e a desconfiança.
Por fim, há uma questão social relevante. As biografias não miram apenas artistas – que hoje se agrupam em defesa do direito da intimidade e parecem se julgar os mais interessantes tipos humanos sobre a Terra –, mas todas as pessoas, como políticos, filósofos, cientistas, esportistas, ladrões, celebridades, generais, ditadores, empresários, escritores, revolucionários, entre outros. O que, legalmente, valer para um, vale para todos, como é próprio da impessoalidade da lei. Portanto, sob o argumento de dar ao biografado ou à sua família o direito de veto de conteúdos, a sociedade não fica apenas sem informações banais ou íntimas, como por exemplo sobre a vida sexual de seus personagens, mas sem a substância histórica inegociável – inclusive acerca de situações que precisam ser denunciadas.
Revoluções O melhor argumento em favor das biografias encontra-se nas livrarias e prateleiras de bibliotecas. Apenas a título de exemplo, seguem algumas indicações de livros lançados nos últimos meses, que merecem ser lidos e refletidos pelo seu valor intrínseco e pelo que simbolizam como forma de ampliação do universo de referências do leitor. Ao ler sobre a vida de Tolstói, Jango, Malcolm X e Zhang Dai, aprendemos sobre a Rússia do século 19, sobre a política brasileira e o tabu em torno da morte suspeita de um presidente, sobre a resistência dos negros americanos e sua luta pelos direitos humanos no país, e acerca da dinastia Ming na China clássica do século 17.
Sobre a vida de Tolstói foram lançados nos últimos meses no Brasil dois livros importantes. O primeiro é Tolstói – A biografia, de Rosamund Bratlett (Biblioteca Azul, 640 páginas, R$ 69,90), um trabalho soberbo, que articula a vida e obra do escritor russo. A autora retrata a infância do romancista numa família aristocrática, a juventude impulsiva e o início de sua vida literária. A obra estuda ainda a concepção dos grandes romances, como Guerra e paz e Anna Kariênina, além de mostrar a estreita vinculação com a sociedade russa, da qual se tornaria a figura arquetípica. O livro trata ainda das ideias sociais e religiosas de Tolstói e de como elas, mais que construções ideológicas, ganharam carne em sua vida e se tornaram modelo para o mundo.
Outra excelente biografia sobre Tolstói recém-lançada no Brasil é Tolstói – A fuga do paraíso, de Pável Bassinski (Editora Leya, 480 páginas, R$ 59,90). Nesse caso, o autor partiu dos 10 últimos dias do escritor, depois que ele, aos 82 anos, em 1910, abandona suas propriedades e a família e parte em busca de sua verdade derradeira. Uma atitude tolstoiana, de fuga disparada por uma crise espiritual, que leva o homem, já combalido pela existência de dissipações, a sair para conquista de uma nova vida, mais pura e consciente. O biógrafo, no entanto, não faz uma leitura literária do gesto de Tolstói, construindo sua obra com cuidadosa pesquisa em cartas e diários do escritor e de seus seguidores na viagem final. Curiosamente, o próprio escritor se dava conta da dimensão pública de sua vida, não fazendo questão de esconder de ninguém suas ambiguidades às portas da morte. Um gigante até o último momento, capaz de viver e morrer como um homem que não teme o juízo de outros homens, já que prestava contas apenas a si mesmo.
Teria sido Jango assassinado? Jango – A vida e a morte no exílio, de Juremir Machado da Silva (Editora L&PM, 372 páginas), é outra biografia de “últimos dias”, marcada por muito mistério e capacidade de derrubar mitos. O autor, que já havia publicado uma biografia romanceada de Getúlio Vargas (Getúlio), retorna à política nacional numa investigação eletrizante sobre a vida no exílio e a morte de Jango. O presidente deposto em 1964 morreu na Argentina, com saudades do Brasil, e em circunstâncias que ainda hoje geram dúvidas. Juremir vai atrás de milhares de documentos e dos arquivos de dois personagens uruguaios, Foch Diaz e Neira Barreto, que lançaram dúvidas sobre a morte natural do ex-presidente e revelaram um complô para matá-lo. Uma investigação que se lê como um romance policial, mas que deixa o travo da verdade ainda a ser revelada à nação.
Prêmio Pulitzer de 2012, a biografia Malcolm X – Uma vida de reinvenções, de Manning Marable (Editora Companhia das Letras, 650 páginas), acompanha as metamorfoses vividas por Malcolm Little até assumir o papel de porta-voz da revolta dos descendentes de escravos no país mais rico do mundo. O historiador americano, com elegância e erudição, segue de perto o homem que foi chamado de Homeboy, Jack Carlton, Detroit Red, Big Red e Satan, até assumir a identidade islâmica como Malachi Shabazz, Malik Shabazz e El-Hajj Malik. A ligação com os movimentos de esquerda, o ativismo político e encontro definitivo com o Islã não passam por cima das dificuldades da vida de Malcom X, que o levaram a agir como ladrão, explorador de prostitutas e viciado em drogas. Uma aula de história americana contemporânea a contrapelo, mostrando o avesso de uma sociedade e a força moral de um homem capaz de se reinventar para se tornar um gigante na luta pelos direitos humanos.
O Ocidente tem o hábito de virar as costas para o Oriente. Por isso, de tempos em tempos, é surpreendido por uma cultura antiga, rica e sofisticada, que sua ignorância voluntária ajudava a esconder. Ou então, como ocorre hoje em dia, se assusta com a força econômica capaz de mudar todas as certezas dos autodenominados países do capitalismo central. Por isso é tão rica a leitura de O retorno à Montanha do Dragão, de Jonathan Spence (Editora Record, 280 páginas, R$ 40). Especialista na cultura chinesa, Spence escolhe como personagem o escritor e historiador Zhang Dai, um dos mais importantes nomes da Dinastia Ming, nascido em 1597. Há mais de 200 anos no poder, sua dinastia, marcada pela estabilidade econômica e força cultural, começava o processo inevitável de decadência, que se completa com a invasão dos manchus, em 1644. O aristocrata Zhang Dai, depois de perder a fortuna, passa a registrar sua vida, reconstruindo o que seu país via submergir com as mudanças. São esses escritos a base do trabalho de Spence. O leitor, além de aprender sobre uma cultura sofisticada, passa a compreender o sentido da mudança na China do século 17 e o papel das transformações numa escala de tempo que vai além das ideologias.
O que os adeptos do Procure Saber precisam saber é aquilo que Freud explica. Não somos os melhores juízes de nossos atos nem os melhores narradores de nossa história. O outro nome para esse reconhecimento pode ser chamado simplesmente de humildade.
Pode-se argumentar que nem todo biógrafo é Freud ou que o que ele fazia era ciência. Além disso, não deve ser esquecido que ele mesmo escreveu sua autobiografia (mais que isso, baseou sua teoria em sua própria existência diurna e sonhada) e que incentivou o discípulo Ernst Jones a produzir algo próximo de uma biografia autorizada, em três grandes volumes. Não foi suficiente: a posteridade foi pródiga em biografias de Freud, que se contam às dezenas – apenas entre as muito boas. Os biógrafos devem ter penado, mas fizeram um bom trabalho, do qual até hoje nos beneficiamos.
No entanto, mesmo com todas as reservas, é bom voltar a Freud e ver que, burguês cioso de sua intimidade, em nenhum momento se julgou defeso do interesse de outros homens, seja em seus momentos públicos ou mesmo em segredos de alma. Tentou dificultar a vida de seus biógrafos queimando documentos, mas não passou por sua cabeça o recurso da censura. Na mesma carta, registra com certo humor que, ao pôr fim aos documentos que julgava chinfrins, estava “quase completando um empreendimento que algumas pessoas ainda não nascidas, mas destinadas ao infortúnio, vão sentir seriamente”. Freud sabia (coisa que Roberto Carlos nem desconfia mergulhado em seu narcisismo primário) que ninguém domina a verdade sobre a própria vida.
Em toda a polêmica sobre as biografias, um tema que tem ficado de fora são as próprias biografias, não o gênero, mas o produto em si, o livro que conta a vida de um personagem real. Por que não ir até as biografias para lhes avaliar os méritos e riscos? O gênero está bem das pernas, tem produzido excelentes trabalhos, informado muitos leitores e aberto portas para outros formatos de estudos, sejam eles históricos, literários ou científicos. As biografias, em sua articulação do geral e do particular, em sua capacidade de desenhar o contexto e mergulhar no indivíduo, são um instrumento privilegiado de acesso ao sujeito e à sociedade. Além disso, a grande tradição das biografias literárias e históricas ganhou muito com a chegada do método jornalístico, com sua obsessão pelo fato e pela apuração exaustiva. Não se pode esquecer também que esse tipo de estudo tem sido por muito tempo um modelo de acesso ao conhecimento por quem não é especialista em algum campo do saber. Quantas vocações científicas foram despertadas pelas biografias de Darwin e Einstein?
Sem esticar ainda mais a falsa diatribe entre direito à liberdade de expressão e direito à intimidade, é bom lembrar apenas um preceito lógico que defende que, em caso de pares aparentemente contraditórios, a solução possível para ambos convivam e sejam exercidos em sua integridade é dar precedência ao que não anula o outro, permitindo que as ações a posteriori corrijam os equívocos de origem. Assim, quando se parte da preservação do direito à intimidade antes do direito à liberdade de expressão, este ficou prejudicado e não poderá ser exercido. No caso inverso, a liberdade de manifestação de pensamento pode até ferir a privacidade, mas esta pode ser retomada em função de correções legais pertinentes.
Assim, há dois caminhos que devem pautar os debates na vida prática: o bom senso que previne os enganos (que só é conquistado na prática, não no silêncio) e os mecanismos de controle e ressarcimento dos erros de fato (que aponta para instrumentos legais e para mecanismos institucionais que tornem a Justiça mais rápida e eficaz, com indenizações mais significativas). Entre duas verdades, deve-se ficar com as duas. A grande questão não é filosófica, mas processual. Isso, é claro, se se trata a questão como um problema ético (em que os dois lados têm razão) e não uma questão de mercado. Se o problema é dinheiro, a questão sai do terreno da ética para adentrar no campo das conveniências. Pelo nível dos contendores – com as exceções notáveis –, até prova em contrário, ainda não chegamos lá.
A equação é simples: uma cultura de biografias gera um mercado mais responsável, editores mais zelosos e biógrafos mais equilibrados. Por outro lado, cria um aparato jurídico mais eficiente, justo e célere. Como em todo setor, a liberdade é instrumento de aprimoramento e as restrições apenas reforçam a regressão e a desconfiança.
Por fim, há uma questão social relevante. As biografias não miram apenas artistas – que hoje se agrupam em defesa do direito da intimidade e parecem se julgar os mais interessantes tipos humanos sobre a Terra –, mas todas as pessoas, como políticos, filósofos, cientistas, esportistas, ladrões, celebridades, generais, ditadores, empresários, escritores, revolucionários, entre outros. O que, legalmente, valer para um, vale para todos, como é próprio da impessoalidade da lei. Portanto, sob o argumento de dar ao biografado ou à sua família o direito de veto de conteúdos, a sociedade não fica apenas sem informações banais ou íntimas, como por exemplo sobre a vida sexual de seus personagens, mas sem a substância histórica inegociável – inclusive acerca de situações que precisam ser denunciadas.
Revoluções O melhor argumento em favor das biografias encontra-se nas livrarias e prateleiras de bibliotecas. Apenas a título de exemplo, seguem algumas indicações de livros lançados nos últimos meses, que merecem ser lidos e refletidos pelo seu valor intrínseco e pelo que simbolizam como forma de ampliação do universo de referências do leitor. Ao ler sobre a vida de Tolstói, Jango, Malcolm X e Zhang Dai, aprendemos sobre a Rússia do século 19, sobre a política brasileira e o tabu em torno da morte suspeita de um presidente, sobre a resistência dos negros americanos e sua luta pelos direitos humanos no país, e acerca da dinastia Ming na China clássica do século 17.
Sobre a vida de Tolstói foram lançados nos últimos meses no Brasil dois livros importantes. O primeiro é Tolstói – A biografia, de Rosamund Bratlett (Biblioteca Azul, 640 páginas, R$ 69,90), um trabalho soberbo, que articula a vida e obra do escritor russo. A autora retrata a infância do romancista numa família aristocrática, a juventude impulsiva e o início de sua vida literária. A obra estuda ainda a concepção dos grandes romances, como Guerra e paz e Anna Kariênina, além de mostrar a estreita vinculação com a sociedade russa, da qual se tornaria a figura arquetípica. O livro trata ainda das ideias sociais e religiosas de Tolstói e de como elas, mais que construções ideológicas, ganharam carne em sua vida e se tornaram modelo para o mundo.
Outra excelente biografia sobre Tolstói recém-lançada no Brasil é Tolstói – A fuga do paraíso, de Pável Bassinski (Editora Leya, 480 páginas, R$ 59,90). Nesse caso, o autor partiu dos 10 últimos dias do escritor, depois que ele, aos 82 anos, em 1910, abandona suas propriedades e a família e parte em busca de sua verdade derradeira. Uma atitude tolstoiana, de fuga disparada por uma crise espiritual, que leva o homem, já combalido pela existência de dissipações, a sair para conquista de uma nova vida, mais pura e consciente. O biógrafo, no entanto, não faz uma leitura literária do gesto de Tolstói, construindo sua obra com cuidadosa pesquisa em cartas e diários do escritor e de seus seguidores na viagem final. Curiosamente, o próprio escritor se dava conta da dimensão pública de sua vida, não fazendo questão de esconder de ninguém suas ambiguidades às portas da morte. Um gigante até o último momento, capaz de viver e morrer como um homem que não teme o juízo de outros homens, já que prestava contas apenas a si mesmo.
Teria sido Jango assassinado? Jango – A vida e a morte no exílio, de Juremir Machado da Silva (Editora L&PM, 372 páginas), é outra biografia de “últimos dias”, marcada por muito mistério e capacidade de derrubar mitos. O autor, que já havia publicado uma biografia romanceada de Getúlio Vargas (Getúlio), retorna à política nacional numa investigação eletrizante sobre a vida no exílio e a morte de Jango. O presidente deposto em 1964 morreu na Argentina, com saudades do Brasil, e em circunstâncias que ainda hoje geram dúvidas. Juremir vai atrás de milhares de documentos e dos arquivos de dois personagens uruguaios, Foch Diaz e Neira Barreto, que lançaram dúvidas sobre a morte natural do ex-presidente e revelaram um complô para matá-lo. Uma investigação que se lê como um romance policial, mas que deixa o travo da verdade ainda a ser revelada à nação.
Prêmio Pulitzer de 2012, a biografia Malcolm X – Uma vida de reinvenções, de Manning Marable (Editora Companhia das Letras, 650 páginas), acompanha as metamorfoses vividas por Malcolm Little até assumir o papel de porta-voz da revolta dos descendentes de escravos no país mais rico do mundo. O historiador americano, com elegância e erudição, segue de perto o homem que foi chamado de Homeboy, Jack Carlton, Detroit Red, Big Red e Satan, até assumir a identidade islâmica como Malachi Shabazz, Malik Shabazz e El-Hajj Malik. A ligação com os movimentos de esquerda, o ativismo político e encontro definitivo com o Islã não passam por cima das dificuldades da vida de Malcom X, que o levaram a agir como ladrão, explorador de prostitutas e viciado em drogas. Uma aula de história americana contemporânea a contrapelo, mostrando o avesso de uma sociedade e a força moral de um homem capaz de se reinventar para se tornar um gigante na luta pelos direitos humanos.
O Ocidente tem o hábito de virar as costas para o Oriente. Por isso, de tempos em tempos, é surpreendido por uma cultura antiga, rica e sofisticada, que sua ignorância voluntária ajudava a esconder. Ou então, como ocorre hoje em dia, se assusta com a força econômica capaz de mudar todas as certezas dos autodenominados países do capitalismo central. Por isso é tão rica a leitura de O retorno à Montanha do Dragão, de Jonathan Spence (Editora Record, 280 páginas, R$ 40). Especialista na cultura chinesa, Spence escolhe como personagem o escritor e historiador Zhang Dai, um dos mais importantes nomes da Dinastia Ming, nascido em 1597. Há mais de 200 anos no poder, sua dinastia, marcada pela estabilidade econômica e força cultural, começava o processo inevitável de decadência, que se completa com a invasão dos manchus, em 1644. O aristocrata Zhang Dai, depois de perder a fortuna, passa a registrar sua vida, reconstruindo o que seu país via submergir com as mudanças. São esses escritos a base do trabalho de Spence. O leitor, além de aprender sobre uma cultura sofisticada, passa a compreender o sentido da mudança na China do século 17 e o papel das transformações numa escala de tempo que vai além das ideologias.
O que os adeptos do Procure Saber precisam saber é aquilo que Freud explica. Não somos os melhores juízes de nossos atos nem os melhores narradores de nossa história. O outro nome para esse reconhecimento pode ser chamado simplesmente de humildade.
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