Para entender o inimigo
Pesquisadores apresentam na revista Science o modelo da proteína usada pelo HIV para invadir as células de defesa do corpo humano. A façanha permitirá o estudo detalhado do agente infeccioso e deve facilitar a criação de vacinas contra a Aids
Isabela de Oliveira
Estado de Minas: 02/11/2013
A estrutura do conjunto de proteínas Env: chance de estudar a chave usada pelo HIV para invadir as células |
Um dos princípios para ganhar uma guerra, segundo o general chinês Sun Tzu, a quem foi atribuída a autoria de A arte da guerra, é conhecer muito bem o inimigo. Talvez isso explique por que a luta contra o vírus da Aids ainda não foi vencida. Apesar de muitos avanços conquistados em anos de estudo, a estrutura e o comportamento do vírus que causa a doença ainda têm vários pontos obscuros. Dois estudos independentes publicados nesta semana na revista Science devem ajudar a mudar essa situação e fornecer um caminho para o desenvolvimento de vacinas contra o HIV.
O feito das equipes responsáveis pelas novas pesquisas foi reconstituir, em nível atômico, uma estrutura presente no envelope do vírus (a camada que recobre o micro-organismo) conhecida como Env. Essa combinação de proteínas é fundamental para que o HIV consiga invadir as células de defesa do corpo humano. Com isso, os cientistas passam a ter um modelo estável dessa importante parte do vírus e poderão estudá-la detalhadamente. Até agora, isso era impossível, porque o Env se mostrava muito frágil. “Ele tende a se desmanchar, mesmo na superfície do vírus. Por isso, tivemos que desenvolver um modelo mais estável”, explica Andrew Ward, autor de um dos estudos e pesquisador do The Scripps Research Institute, em La Jolla, Califórnia.
Para alcançar a façanha, o grupo de Ward utilizou uma técnica chamada de cristalografia, que consiste em criar um cristal com a estrutura estudada e, depois, atravessá-la com um feixe de raios X. Já o outro grupo, encabeçado por Dmitry Lyumkis, também do The Scripps Research Institute, optou pela microscopia crioeletrônica, na qual as amostras são observadas em temperaturas muito baixas e vistas com resoluções altíssimas. Os dados obtidos em ambos experimentos mostraram o complexo processo pelo qual o Env muda de formato para iniciar a infecção.
As primeiras análises mostram que a estrutura se compara às proteínas do envelope de outros vírus perigosos, como as da gripe e do ebola. Os pesquisadores acreditam que os resultados ajudarão a projetar anticorpos a ser utilizados no desenvolvimento de vacinas. A professora da Universidade Católica de Brasília, Paula Andreia Silva, que não participou do estudo, concorda. “Esse trímero de proteínas do envelope viral têm sido alvo de estudos porque é o responsável pela entrada do vírus na célula hospedeira e é alvo da ação de anticorpos que neutralizam a partícula viral impedindo a infecção. O impacto desse trabalho está na possibilidade de desenhar novos imunógenos para serem usados como vacinas contra o HIV”, afirma Silva, pós-doutora em virologia pela Humboldt Universitat e Robert Koch Institute, em Berlim.
Avanço Segundo Lívia Vanessa R. Gomes, médica infectologista e chefe do Núcleo de Infectologia do Hospital de Base do Distrito Federal, existe um grande número de estudos relacionados à determinação estrutural do HIV, incluindo a estrutura de superfície e até as proteínas das próprias células infectadas, utilizadas para formar os novos vírus formados. “A novidade é que estamos cada vez mais próximos de compreender todos os mecanismos físico-químicos envolvidos na entrada do vírus nas células humanas. Esse é um importante avanço, uma vez que permite a descoberta de novas alternativas terapêuticas que possam potencializar as já existentes e, inclusive, colaborar para o desenvolvimento de uma provável vacina, pois delineia os principais sítios antigênicos reconhecidos pelo sistema imune”, acredita a médica.
Apesar, do grande passo que o estudo representa, Gomes lembra que isso, infelizmente, não significa que a cura esteja muito próxima. “Ainda não podemos afirmar que esse é um determinante de cura ou de que teremos uma vacina viável para administração em seres humanos de forma imediata. A guerra contra o HIV ainda está sobre os alicerces da prevenção e do uso de medicações antirretrovertais, que inibem a replicação do vírus.”
Presença do vírus reduzida em macacos
Um dos avanços mais expressivos da busca por uma vacina contra o HIV foi o isolamento e a caracterização de anticorpos que possuem uma grande capacidade de neutralizar a maioria das estirpes do vírus em circulação. As estratégias de ação desses potentes anticorpos humanos, chamados de monoclonais amplamente neutralizantes (mAb), envolvem o reconhecimento e o bloqueio de peças fundamentais do envelope viral. Por serem direcionados para atacar regiões muito específicas, esses anticorpos aparecem em menor quantidade no sistema imunológico, fazendo com que sua ação seja reduzida. O que tem tornado muito difícil a tarefa de gerar uma vacina ou terapia eficiente a partir dos mAbs.
Isso não significa, contudo, que os benefícios trazidos por esses anticorpos está relegado a um futuro distante. Dois estudos publicados na edição desta semana da revista Nature demonstram como combinações de tais ferramentas do sistema imunológico são capazes de reduzir notavelmente os níveis do vírus em macacos rhesus cronicamente infectados com o HIV. Os resultados obtidos por dois grupos de pesquisa, formados por universidades norte-americanas e europeias, foram consistentes.
A administração de coquetéis com dois ou mais tipos de mAbs conseguiu suprimir a presença do vírus no sangue (viremia), que chegou a ficar abaixo do nível de detecção. A redução da quantidade de vírus no organismo dos animais persistiu durante semanas. No entanto, os níveis de mAb permaneceram estáveis. A equipe de pesquisa liderada por Dan H. Barouch, da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, provou que um anticorpo chamado PGT 121 foi capaz de fornecer uma supressão viral prolongada mesmo quando administrado sozinho.
“A viremia só conseguiu se restabelecer no organismo da maioria dos animais após uma média de 56 dias, quando a quantidade de mAbs no soro sanguíneo caiu para níveis indetectáveis. Esses dados demonstram um efeito terapêutico profundo dos mAbs em macacos infectados e um poderoso impacto nas respostas imunológicas do hospedeiro. Nossos resultados incentivam fortemente a investigação da terapia com esses anticorpos em seres humanos”, diz Barouch.
Combinação Louis Picker, pesquisador da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, também nos EUA, destaca que o trabalho deve ser analisado com cautela. Afinal, os testes ainda não foram realizados em humanos e a elevada mutabilidade do HIV dificulta o uso dos mAbs terapêuticos . No entanto, o especialista acredita que os resultados podem revolucionar os esforços para combater a Aids.
A junção da terapia convencional e da abordagem com mAbs poderia reduzir a replicação viral de forma mais eficiente. “No mínimo, esses resultados vão catalisar colaborações entre as equipes de especialistas que têm, por décadas, trabalhado com linhas diferentes de prevenção e tratamentos contra o HIV”, completa o pesquisador, que não participou dos estudos. (IO)
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