domingo, 15 de dezembro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » A pergunta de São Pedro‏


AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » A pergunta de São Pedro
Estado de Minas: 15/12/2013 





Aquele filme Azul é uma cor quente tem sido muito discutido (e visto), porque há cenas demoradas, detalhadas mesmo, da relação erótica entre duas mulheres. Os homens sempre ficam pensando: o que é que duas mulheres podem fazer na cama na ausência do falo!? O diretor, o tunisino/francês Abdellatif Kechechi, expôs fartamente seu voyeurismo sexual.

A mim, outras coisas também chamaram a atenção: os personagens comem muito macarrão à bolonhesa. E a pasta não me parecia boa. Por que comem tanto macarrão se são franceses? Além disso, falam muito de literatura. Os franceses têm esse vício: transformam tudo em filosofia do cotidiano. O filme, aliás, é muito literário e poderia ser cortado em 45 minutos, só melhoraria.

A atriz principal estuda literatura e gosta. Há conversas sobre Sartre e aparece até um professor de literatura dando aula. A literatura é uma forma de ir sacando o que é a vida. A pessoa ainda não viveu as coisas, mas já sabe romanescamente. Não há povo tão literário quanto os franceses.

Estava eu nessas cogitações quando dou com uma notícia que é a extensão disso. Era sobre literatura russa. Vocês sabem que quando a pessoa morre e chega ao céu, São Pedro logo pergunta se ela leu Dostoiévski ou Tolstói? (Às vezes pergunta também se o candidato ao céu já leu Clarice Lispector ou Guimarães Rosa.) Ou seja, houve um tempo em que ler os russos era uma forma de batismo literário. Uma amiga (daquele tempo!) acabou com o namorado porque ele não havia lido “os russos”.

Pois a Rússia mudou muito. Já foi comunista e deixou de sê-lo. Não deve haver mais selo com e efígie de Lênin e Stalin. E mudou sobretudo em relação à leitura. Nós, que vivemos reclamando que os brasileiros não leem, talvez fiquemos menos solitários ao saber que o Instituto de Pesquisa Fundo de Opinião Pública divulgou estudo revelando que 44% dos russos não tinha lido um único livro no último ano .

– Culpa da pós-modernidade! Hão de dizer os literatos.

– Culpa da internet! Hão de dizer nossos avós.

– Culpa do capitalismo! Hão de dizer os irremissíveis comunistas.

Já que nos russos não leem mais, já que todo mundo gosta de coisas rápidas e visuais, a Agência Federal de Imprensa e Comunicação de Massa resolveu, juntamente com a União Livreira da Rússia e a agência de publicidade Slava, deslanchar uma campanha de leitura levando os clássicos às massas. Ou seja, massificaram os clássicos. Fizeram versões jornalísticas de O jardim das cerejeiras, de Tchekhov; Eugueni Oneguim, de Puchkin; Anna Karenina, de Tolstói; e Mumu, de Turgueniev.

Foram ainda mais longe. Para despertar a atenção dos possíveis leitores dessas obras, fizeram uma série de chamadas, como se faz na publicidade do produto, anunciando aqueles romances mencionados assim: “Ambientalistas alertam: programadores ameaçam bosque intacto”; “Homem atira em amigo por causa de cantada”; “Esposa de alto funcionário se suicida depois de briga com amante”; “Zelador se revela cruel caçador de cachorros”.

Vocês já devem ter visto algumas versões divertidíssimas (e tolas) de obras clássicas para vestibular. São engraçadas. Na minha infância, li em quadrinhos, na Edição Maravilhosa, vários clássicos, desde a Ilha do tesouro  e Ivanhoé ao Corcunda de Notre Dame. Era uma forma de iniciação. As bancas de jornais supriam a falta de livrarias. Convenhamos, há várias formas de se chegar ao livro. E livro, mais uma vez, está em mutação. Lavoisier continua a ter razão: tudo se transforma. Nunca as pessoas tiveram tanta facilidade para ler um livro. Qualquer pessoa tem uma tremenda biblioteca em suas mãos. É só acionar.

Mas devo confessar que depois disso já não estou tão seguro se São Pedro fará qualquer pergunta sobre leitura a quem bater à sua porta.

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